domingo, março 11, 2007

Cinefilias IV (O Labirinto do Fauno)



“Conta-se que há muito, muito tempo, a filha do rei do mundo subterrâneo sentiu um desejo irresistível de abandonar o seu reino de sombras e escuridão, e conhecer o mundo de luz, à superfície. Apesar da vigilância atenta dos servos do reino, conseguiu escapar, e fugir pela escadaria que desembocava na abertura ao mundo exterior. Lá em cima, a luz do sol irremediavelmente apagou as suas recordações de herdeira do reino, e tornou-a mortiça e frágil como os humanos, acabando a princesa eventualmente por morrer, esquecida do seu passado e das suas origens. Diz a lenda que o rei e a rainha ainda aguardam o retorno da sua filha, em outro corpo, quem sabe?, para reclamar o seu lugar como princesa herdeira do trono subterrâneo.”

Começa desta forma o filme do realizador mexicano Guillermo del Toro (mais ou menos, esta sinopse inicial foi escrita com base no que recordo, pois não consegui encontrar uma transcrição literal), e permitam-me que avance desde já com a informação que há algum tempo que não via um filme assim, que me enchesse por completo as medidas (desde “Little Miss Sunshine”), e ao qual não conseguisse apontar rigorosamente nenhuma falha. É frequente sentir-me assim perante algumas particulares obras, que depois não sobrevivem a uma segunda leitura ou visionamento (como “O código da Vinci” que adorei quando li a primeira vez, e que achei mediano e mal escrito na maioria das passagens, à segunda leitura); este apontar de perfeição deve-se ao deslumbre inicial quando sou confrontado com algo que me entusiasma particularmente, e que me deixa incapaz de notar as falhas mais ou menos óbvias. Pode ser que assim suceda com “O Labirinto do Fauno”, mas caramba, vai continuar a ser um dos favoritos. Sem dúvida.

Depois da introdução fantasiosa, somos apresentados à pequena Ofélia, uma rapariga fascinada com histórias de contos de fada, que viaja numa comitiva militar com a sua mãe, em estado de gravidez avançada, para ter com o seu padrasto, o capitão Vidal, um militar destacado para um posto militar rural no interior de Espanha, no período da guerra civil espanhola. A meio da viagem Ofélia encontra uma pedra com um olho esculpido, que encaixa numa estátua de aspecto antigo e pagão na margem da estrada. Este acto faz com que um insecto de aspecto estranho (maravilhosamente criado por computador) saia da boca da estátua, e a siga até ao posto militar, localizado no meio da floresta, num velho moinho.

O padrasto de Ofélia é um homem frio e calculista, que as recebe de uma maneira formal e distante, e naquela noite Ofélia é visitada pelo insecto, que assume a forma de uma fada, e a convence a segui-la até ao labirinto próximo do moinho, e a descer pelo poço que se encontra ao centro. Lá em baixo, Ofélia conhece o Fauno, que lhe diz que ela é a princesa perdida do reino subterrâneo, e que terá de cumprir três tarefas, para ocupar novamente o seu lugar a lado dos verdadeiros pais.

Dito desta maneira, poder-se-á pensar que “O Labirinto do Fauno” é um filme fantasioso e imaginativo, completamente deslocado do mundo onde vivemos. Até certo ponto, é verdade, pois nunca temos a certeza de que o que Ofélia vê (e nós), seja real, podendo até assumir que tudo aquilo não passa do delírio de uma criança que leu demasiados livros (como se isso fosse possível). O génio do realizador consiste em colocar todo este ambiente mágico num momento particularmente negro e cruel da história de Espanha, desenvolvendo praticamente duas histórias diferenciadas, embora com paralelismos aqui e ali.

Assim, de um lado temos as provas que Ofélia tem de encarar, com fantásticas criaturas e monstros absolutamente tenebrosos (a sério, há pelo menos um que é de arrepiar a espinha – o da foto acima), e por outro temos a luta que o Capitão Vidal empreende contra os rebeldes escondidos na floresta, e como este personagem se revela um monstro absolutamente maior e mais apavorante do que qualquer criatura do reino da fantasia. Não estou a brincar, este homem é assustador, a forma como assassina sem remorsos, tortura sem piedade, e o desprezo total que vota a todos os que o rodeiam (perante os problemas de gravidez da esposa não hesita em dizer ao médico para não se preocupar com a vida dela, se necessário, mas que salve o filho a todo custo), conseguem ser ainda mais arrepiantes.

Numa altura em que a maioria dos filmes produzidos pela máquina de Hollywood parecem ter sido feitos apenas e somente com base em fórmulas predefinidas de marketing, destinadas a arrancar o máximo de dinheiro possível das audiências no primeiro fim-de-semana de estreia, constato que cada vez mais encontramos ideias frescas e originais em cineastas que cresceram e aprenderam à margem dessa cultura de lucro fácil, ainda que tenham sido influenciados positivamente por ela. Grande parte dos realizadores de Hollywood, actualmente, sofrem de uma gritante falta de ideias, preferindo repetir fórmulas de sucesso à exaustão (e fazer remakes inúteis de filmes estrangeiros). Em cima disto, há a pressão das bilheteiras imposta pelos produtores, que preferem estrear filmes com a classificação mínima, por forma a maximizar a audiência potencial. Esta atitude compromete a visão de quem escreveu e de quem realizou os filmes, e se estas regras fossem aplicadas a “O Labirinto do Fauno”, o filme não seria metade da obra prima que é.

Vejamos, por exemplo, a cena onde Ofélia tem que entrar na sala do monstro da foto acima. Só de olhar para a aparência dele, percebemos que dali não pode sair nada de bom, mas para melhor ilustrar a ameaça que pende sobre a protagonista, Guillermo del Toro não se coibiu de, em primeiro lugar, mostrar-nos a decoração da sala, carregada de painéis onde o monstro aparece em variadas cenas macabras, a torturar e a comer bebés e crianças. Depois a câmara foca-se num canto da sala, onde existe uma pilha enorme de sapatos de crianças, as vítimas da besta. Agora imaginem os produtores de Los Angeles a ver isto, e a pensarem na classificação que o filme vai ter, e nos milhares de clientes com idades abaixo dos 13 anos que não vão poder entrar nas salas para ver o filme; quase consigo ouvir os cortes de tesoura a que o filme poderia ter sido submetido, fossem outros os financiamentos, e outro o realizador. Desenhos de bebés a serem esquartejados e devorados? Snip snip, não, não podemos chocar os espectadores, ora bolas, senão como poderíamos concretizar o cinematográfico objectivo mundial de transformar as multidões de indivíduos pensantes na massa amorfa capaz de pagar para engolir tudo aquilo que lhe enfiamos pelas goelas?

Ofélia é uma criança solitária, inserida num mundo terrível de violência e atrocidades sem par, povoado de monstros que poderiam ter existido (e que na verdade existem, neste mundo em que vivemos), portanto não é de estranhar que encontre escape nas fantasias dos contos de fada, mesmo que sejam contos de fada sombrios, como aliás todos os contos de fadas são (pelo menos antes da trituradora da Disney). Com um aspecto visual verdadeiramente impressionante, e perfeito em todos os detalhes, este filme representa um escape ideal para as nossas preocupações do dia a dia (ainda que durante a duração da película), e, no que me toca, vai ser sempre um dos favoritos. É um sonho fantástico, salpicado aqui e ali por elementos de pesadelo, que termina de uma forma ambígua, cabendo ao espectador decidir o que realmente aconteceu. Imperdível.

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