A primeira recordação que tenho da escrita data da terceira classe, já lá vão – meu Deus! – quase trinta anos. Não era um miúdo tímido, mas reservado o suficiente para preferir passar horas agarrado aos livros e às revistas de banda desenhada, ao invés de esfolar as sapatilhas no campo de terra batida, a dar pontapés na bola. Agora vejo o Cristiano Ronaldo na televisão e penso se terá sido uma boa opção, mas foram boas horas, sentado no sofá, deitado no chão, estendido na cama, a ler até os cotovelos doerem, a devorar palavras como se não houvesse amanhã. Creio ser daí que me nasceu esta vontade incontrolável de regurgitar textos infindos: ainda estou a deitar cá para fora todos os milhões de palavras que fui digerindo ao longo da vida. Sem dores nas canelas e sem um tostão no bolso.
Esta bulimia literária não é doença recente; desde que descobri os sonhos que se escondem na palavra escrita, que tento dar-lhes forma no papel, e não foram poucas as vezes que me debati e suei, a espernear interiormente, nas tentativas de esculpir uma amostra de ideia, um conceito pungente, em algo que possa ser lançado ao mundo, aos berros como um recém nascido zangado que não recebe atenção. Mudar o mundo? Não. Só quero fazer um pouco de barulho.
Na terceira classe a professora mandou-nos escrever uma redacção sobre o último dia de aulas. Estávamos no início do Verão, e os dias aqueciam, soalheiros, a prever incêndios e mergulhos no rio Paiva. Dos campos ao redor da vila levantava-se o cheiro da natureza que sente o ar que começa a abafar de calor, e os zumbidos da bicharada eram chamamentos que nos punham a todos, prisioneiros na frescura austera da escola primária, irrequietos nos assentos, a ansiar pela vida ao ar livre debaixo de um céu sem nuvens.
Escrever redacções era a minha actividade favorita, na idade da inocência, em contraponto directo ao desagrado que sentia por tudo o que estivesse envolvido com números e contas. Assim, aplicava-me particularmente e compensava as desgraças matemáticas com louvores escolares que celebravam as vitórias do português. Naquele dia escrevi um texto elaborado (pelo menos achava que sim) sobre o meu último dia de aulas, exactamente no momento em que vejo as minhas notas afixadas no quadro de cortiça, e saio a correr da escola, acompanhado do meu inseparável sidekick, o cão Farrusco, que nunca existiu a não ser na minha cabeça e naquela folha do caderno que, a existir, deve estar bem amarelecida e com tinta a desbotar. O Farrusco era um animal prodigiosamente interessante, aparte o facto de ser um produto da imaginação juvenil, pois compreendia tudo o que lhe dizia, tal e qual o Tim dos Cinco.
Enfim. O motivo pelo qual nunca esqueci esta redacção em particular – não foi a primeira ou a última – deve-se a uma frase que rabisquei cuidadosamente na folha, com o orgulho do escritor consagrado, onde comentava com o Farrusco que agora é que era, com o começo das férias já podíamos brincar aos piratas no rio, e fazer um monte de coisas divertidas. Um monte de coisas divertidas. O Farrusco respondia com o latido é-verdade-tens-toda-a-razão-do-que-é-que-estamos-à-espera?, enquanto galgava as ruas empedradas da vila em passada acelerada, ao meu lado.
Um monte de coisas divertidas. Quando o caderno voltou da caneta inquisidora da professora, mulher pequena vestida de negro que ocultava um coração frio sob a aparência de Vóvó Donalda, as palavras “monte de” traziam um grosso risco vermelho a todo o comprimento, e por cima, como se tivessem morrido e lhes pairasse a alma acima do corpo, estava a substituta “muitas”, acompanhada do comentário que não se faziam montes de coisas, mas sim muitas coisas. Que me lembre, também foi nesse momento que senti pela primeira vez a pontada amarga da injustiça, a ferroar o coração com a marca da indignação: Um monte? Claro que era um monte! Se o personagem da história era eu, é lógico que falasse “um monte” e não “muitas”, então se eu dizia “um monte” um monte de vezes, ora que merda. Riscar a minha expressão cuidadosamente colocada e fiel ao espírito da personagem, colocando em seu lugar uma substituta de quinta categoria, sem qualquer respeito ou capacidade de compreensão da intenção do autor, era um flagrante atentado à liberdade criativa, uma tentativa brutal de agrilhoar a minha voz, de moldar as minhas palavras aos modelos impostos pela sociedade.
Não o exprimi em tantas palavras, mas a verdade e que fiquei mesmo chateado, e agora nem sei se o facto de ser um defensor pétreo da liberdade sob qualquer forma de expressão artística não se deve a esse traço vermelho que manchou uma página imaculada. Seria ridículo se assim fosse, heh, ou talvez não. De mais a mais a redacção ainda trazia uns rabisquitos encarnados, fruto do excesso de vírgulas. Sempre foram o meu fraco, as vírgulas.
Deixemos o Farrusco para trás, a correr com um rapazinho franzino que só pensa em empunhar uma espada e descobrir tesouros enterrados, e avancemos mais ou menos dez anos. Nessa altura estava no Brasil, e de pirata sanguinário passei a adolescente inseguro, eternamente fascinado com as formas femininas que esticavam e repuxavam t-shirts de algodão e calças jeans de corte piroso (lembrem-se, eram os anos oitenta). Fiz lá o décimo primeiro e décimo segundo anos do secundário (os equivalentes do ensino português, o nome era diferente), só com aulas de manhã; antes de apanhar o ônibus para casa passava sempre na Biblioteca de Suzano (estado de São Paulo) e trazia um ou dois livros que me acompanhavam nas tardes tropicais. Ainda tenho um cartão dessa biblioteca, e sorrio sempre que vejo as datas que a funcionária ia registando: todos os dias entregava livros, e todos os dias trazia livros. Nas primeiras vezes era olhado com alguma desconfiança, e quase conseguia ver os mecanismos a rodarem atrás dos olhos inquiridores (mas o que é que ele faz com os livros? Será algum fetiche?).
Quando fiz dezoito anos recebi uma máquina de escrever dos meus pais, a pedido, e não imaginam a satisfação que senti quando destravei pela primeira vez as patilhas da caixa em formato de mala de viagem, de cor verde-hospital, e fiz deslizar cuidadosamente o animal metálico de teclas reluzentes para o mundo. Foi o prazer de quem encontra um destino.
Passei horas debruçado no martelar das teclas, a escutar o som característico, tão agradável, tec tec tec, das palavras a nascerem. Os computadores e teclados são muito bonitos e práticos, e sem dúvida que a tecla backspace é uma bênção que brotou de uma nascente do céu, mas também perdemos o encanto daquele tec tec tec, o ideal romântico dos escritores em quartos escuros, com uma garrafa de gin ao lado e uma mulher nua adormecida na cama, a fazerem barulho por entre as golfadas de fumo do cigarro esquecido no cinzeiro transbordante. A fazerem barulho? Não. A mudarem o mundo.
O primeiro texto que escrevi na máquina era uma imitação insossa dos romances policiais que não me cansava de ler: contava a história de um policia à paisana que vai a um bar de aspecto sujo e decadente, e descobre que o serial killer, ao estilo do Jack o Estripador, que anda a deixar um rastro de sangue na cidade, escolhe as ruas alfabeticamente para cometer os seus assassinatos. Depois de sair do bar, que tive o cuidado de descrever exaustivamente em todos os ínfimos pormenores, o polícia dirige-se à rua onde deduziu que ocorreria o próximo crime, e acaba deitado numa poça do próprio sangue, emboscado pelo facínora. Afinal era o próximo da lista, reparem no delicado entretecer de pistas até à surpresa final. Ai ai, que amador…
Depois escrevi nada mais nada menos do que quatro livros. Sim, quatro, qual é o espanto? O primeiro nasceu de uma inspiração momentânea: estava quase a adormecer e tive de agarrar no papel e caneta, e passar a noite toda acordado: tratava-se da história de Sardasan no formato de poemas curtos, um ser/rapaz/animal/qualquer coisa, que vive numa pedra no meio de um lago e um dia recebe a visita de um bicho inidentificável, que o informa da existência do Amor e da Felicidade. O nome Sardasan apareceu-me num sonho, e o personagem embarca numa jornada interior e exterior, onde conhece variados animais falantes, até encontrar por fim o Amor e a Felicidade. Não se riam, que esse tipo de romantismo lamechas ainda cá anda, mais ou menos camuflado, embora já não tenha a desculpa dos meus dezassete anos para o justificar. O título era “Não conheço aqueles que se lembram da Felicidade” (também apareceu num sonho).
Os dois livros seguintes foram as sequelas da história de Sardasan, e pela primeira vez tive o mérito (?) de me dizerem que demonstrei o que era o verdadeiro amor (a segunda foi recentemente). Foi o meu amigo Fernando Yujiro Sumiya, que, juntamente com o meu grande amigo Renato Matsui Pisciotta, eram as cobaias sofredoras a quem eu submetia as minhas barbáries literárias. Não os vejo há mais de quinze anos, e tenho saudades deles.
O quarto livro foi um projecto mais ambicioso: uma história em prosa, com capítulos e tudo, na melhor tradição da literatura de ficção científica. Dois soldados inimigos são colocados num planeta deserto por uma raça de alienígenas, para lutarem até à morte, recaindo sobre eles o destino da humanidade. Fantástico, na verdade, e é mesmo uma pena que fosse uma cópia descarada (mas não plágio) de uma história que tinha lido há pouco tempo nas Selecções do Readers Digest.
Escrevi outros contos posteriormente, e lamento ter perdido todas as cópias que tinha dessas tentativas pueris de me lançar na escrita. O Renato ficou com algumas páginas, e de tempos a tempos lá o chateio para digitalizar e me mandar, mas até agora as minhas surtidas ainda não tiveram efeito naquela mente perversa. É pena, gostava mesmo de me submerger na nostalgia de ler textos que já não recordo ter escrito.
Quando vim para Portugal trouxe a máquina de escrever, e o último conto que registei nas teclas musicais foi a história futurista de umas pessoas que vivem num pântano repleto de rãs, depois da hecatombe humana, sobrevivendo a custo, escondidos das máquinas que são os novos senhores do mundo. Depois fui para o Exército, e passaram-se anos – pontuados por textos ocasionais – até encontrar a Internet, os fóruns, e as palavras, novamente. Se calhar nunca as perdi, e se fossem seres vivos, as palavras, imagino todos aqueles anos em que estiveram semi-adormecidas, talvez pacientemente emboscadas nos recessos do subconsciente, à espera da oportunidade de atacar, de viver outra vez.
Dos fóruns passei para os blogs, algum tempo depois da moda que acometeu tudo quanto é internauta com algo (ou nada) para dizer, que nunca fui pessoa de embarcar à primeira nos desvarios da humanidade. Passada que foi a explosão inicial, resolvi-me a criar este espaço, sem expectativas de audiência, sem sonhos de glória e fama e fortuna. Pelo menos nisso sou realista, ora bolas. E espanto-me com as pessoas que já conheci, com aquilo que já disse, com o barulho que já fiz, e como mudei o mundo, o meu mundo, com as minhas palavras.
Como é possível, passado um ano, que ainda exista este monstro que constantemente me atormenta com pedidos de posts, esta coisa que faz um ano hoje, e ainda berra como recém-nascido que quer mamar um biberão de palavras, todos os dias. Faço-o passar tanta fome, eu sei, mas quando me decidi a criar o Passengers foi com o acordo prévio de que seria atípico dos milhares de blogs actualizados diariamente com parágrafos isolados, imagens, filmes, reflexões momentâneas certeiras ou mordazes, pequenos episódios do dia a dia. Não, meus amigos e amigas, aqui escreve-se ao quilo, com a eficácia de um comprimido para dormir, e por vezes com a inépcia de um macaco que escreve à máquina na esperança de criar um Shakespeare.
Passou um ano, e ainda cá estou, e passaram-se muitos anos, e ainda cá estou. Pirata sem perna de pau, adolescente frustrado que sonha com o seu nome em capas de papel couché, soldado cavaleiro aprumado que sonha longe da parada, civil apaixonado com dores nas costas que se estica para o mundo através de um monitor, temos todos ainda muito mais para contar, pelo que pedimos que verifiquem se ainda têm o vosso bilhete na mão, e se encostem nos assentos. A viagem vai continuar.
Montes de coisas para contar. Este macaco tem montes de coisas para contar, ainda. Montes. Montes. Montes.
PS – Aproveito para dar os parabéns à Patrícia, que vive dentro do fogo também há exactamente um ano. O espaço dela é feito de luz e intimidade, ao contrário do meu, que mascara e ilude nas sombras, por entre as verdades ocasionais. Que continues por muitos (montes de) anos, nesta tarefa de macacos, e que a tua convicção, força, e amor, se mantenham inabaláveis.