quarta-feira, outubro 04, 2006

Leituras IX


"Nebara Jozen não o escondera. Morrera com dificuldade, chorando de medo, implorando misericórdia durante a morte lenta e cruel a que fora submetido. Tinham-lhe permitido que fugisse, depois sofrera golpes de baioneta, desferidos por entre risos, depois fora obrigado a correr novamente até que lhe cortaram os tendões das pernas. Depois deixaram-no rastejar, estripando-o lentamente, enquanto ele gritava, o sangue a misturar-se com os excrementos, sendo depois abandonado para que morresse.
Depois Naga focara a sua atenção nos restantes samurais. De imediato, três dos homens de Jozen se ajoelharam, descobrindo os ventres e colocando facas afiadas diante deles para cometerem seppuku com ritual. Naga permitiu que três dos companheiros destes se colocassem por detrás deles, de espadas alçadas e seguras com ambas as mãos. Quando os samurais ajoelhados se inclinaram para pegar nas facas, estenderam os pescoços e as três espadas fenderam os ares, decapitando-os de um só golpe. Os dentes entrechocaram-se nas cabeças caídas, e depois ficaram imóveis. As moscas acorreram.
Em seguida ajoelharam-se dois samurais, ficando o último homem por detrás deles. O primeiro a ajoelhar-se foi decapitado da mesma forma que os seus camaradas, quando se inclinava para apanhar a faca. O segundo disse:
- Não. Eu, Hirasaki Kenko, sei como devo morrer... como um samurai deve morrer.
Kenko era um homem novo, suave, sempre muito perfumado, quase bonito, de pele clara, que usava o cabelo muito bem oleado e limpo. Pegou reverentemente na faca, rodeando o cabo desta com a sua faixa, a fim de melhor a segurar.
- Apresento o meu protesto pela morte de Jozen-san e de todos os seus homens - disse, firmemente, inclinando-se diante de Naga. Olhou o céu pela última vez e dirigiu ao seu ajudante um último e tranquilizante sorriso. - Sayonara, Tadeo. - Depois enterrou a faca profundamente no lado esquerdo do ventre. Rasgou-o de lado a lado com o auxílio de ambas as mãos e retirando-a, voltou a afundá-la violentamente, desta vez um pouco acima de uma das virilhas, puxando-a para cima, em silêncio. As entranhas dilaceradas penderam-lhe para o regaço, e só quando o rosto hediondamente contorcido e agonizante se inclinou para cima é que o seu ajudante deixou a espada cair, desferindo um único golpe.
Naga pegou, ele mesmo, na cabeça, segurando-a pelos cabelos que estavam presos no cocoruto, limpou-lhe a sujidade e fechou-lhe os olhos. Depois disse aos seus homens que a mandassem lavar e embrulhar, enviando-a depois a Ishido, com todas as honras e o relatório completo da bravura demonstrada por Hirasaki Kenko.
O último samurai ajoelhou-se. Não havia mais ninguém para o executar. Também este era jovem. As mãos tremiam-lhe e estava terrivelmente assustado. Por duas vezes cumprira o seu dever para com os camaradas, por duas vezes os executara de forma perfeita, honoravelmente, salvando-os da dor e da vergonha do medo. E aguardara, igualmente, que o seu maior amigo morresse como um samurai devia morrer, auto-imolado num silêncio repleto de orgulho, executando-o depois com a mesma perícia impecável. Nunca antes matara.
Os seus olhos pousaram na faca. Descobriu o estômago e rezou para que tivesse a mesma coragem que o amigo tivera. As lágrimas ameaçavam subir-lhe aos olhos, mas impôs ao rosto uma máscara sorridente e impassível. Desenrolou a faixa e envolveu o punho da faca. Nessa altura, como o jovem estava a cumprir honrosamente o seu dever, Naga fez sinal a um dos seus tenentes.
Este aproximou-se e, inclinando-se, apresentou-se formalmente.
- Osaragi Nampo, capitão da Nova Legião do Senhor Toranaga. Terei muita honra em actuar como seu ajudante.
- Ikomo Tadeo, primeiro-oficial, vassalo do Senhor Ishido - replicou o jovem. - Obrigado. Sinto-me honrado em aceitá-lo como meu ajudante.
A sua morte foi rápida, indolor e honrosa.
As cabeças foram recolhidas. Um pouco mais tarde, Jozen recuperou a consciência. Com as mãos, tentou frenética e escusadamente manter os intestinos no interior do ventre.
Deixaram-no entregue aos cães que, entretanto, tinham vindo da aldeia."
Coloquei este sangrento e visualmente descritivo post apenas para dizer que não, não me esqueci que tenho um blog. Estou a adaptar uma história do Sandman, de Neil Gaiman, e a tradução está a demorar um pouco mais do que o previsto, para além de que estes últimos dias tem sido um pouco cansativos e muito muito muito ocupados. Mas estou quase a terminar, ao belo ritmo de uma página por dia, pelo que em breve retomarei o serviço normal, com a mesma irregularidade de sempre. :)

10 comentários:

marta, a menina do blog disse...
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Flávio disse...

Já somos dois, Sandman. O último mês foi terrível, mal tive tempo de dar um pulo ao cinema, quanto mais actualizar o blogue.

Sandman disse...

Marta, quando li a tua resposta pensei que tinhas escrito mal o nome do filme :), mas depois fui confirmar e afinal está mesmo mal! É Bichunmoo :)

Não sou adepto por aí além de Wuxia, mais um espectador levemente interessado, mas agrada-me a estética e poesia visual destes filmes. Se tiver oportunidade, seguirei o teu conselho.

Sandman disse...

Nem me fales, Flavio. Acho que a minha vida no dia a dia está cada vez mais a conspirar para me acumular niveis e mais níveis de stress em cima... às vezes parece que acordo já cansado.

Felizmente, julgo que a partir da semana que vem vou poder respirar melhor. Ou talvez não, a ver vamos...

Em termos de cinema, o ultimo que fui ver (após um longo período sem visitar uma sala, desde Superman) foi o "Animal" com o Diogo Infante (eu já desconfiava, e não queria ver, mas fui vencido pela maioria)... mas achei aquilo tão mauzinho, mas tão mauzinho, que nem tive ímpeto para arrasar com ele no blog. É do cansaço, claro.

Amanhã escolho eu o filme. Nem que a vaca tussa.

Anónimo disse...

:)

Eu fico a aguardar por essa tradução.. e que os sonhos te acompanhem!

Flávio disse...

O Diogo Infante, nem vê-lo. Além de péssimo profissional (pertence à categoria muito pouco abonatória que eu designo de 'actores obstipados'), é um indivíduo arrogante e detestável. Porque não dedicar uma crónica no Passengers ao tal filme, só para desancarmos no senhor?

marta, a menina do blog disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Patrícia disse...

como vai a adaptação da história, Sandman?

Sandman disse...

Olá Patrícia. Tenho andado super ocupado, e bastante cansado ao fim do dia, mas este fim de semana vou colocar esse post. A história é fantástica, vais ver que a espera valeu a pena. :)

Espero que em breve a minha vida sossegue um pouco, para poder voltar à escrita e ao blog (claro). Fazem-me falta as palavras.

Beijos

Patrícia disse...

:)

Ficarei atenta.

Beijos