Estive lá no outro dia, sabes? Depois da bifurcação ao lado da casa que pertenceu ao agricultor que viveu a vida inteira com um pé na aldeia e o outro no mundo, mas morreu só,
e agora é a casa que morre só, vazia e empoeirada
passando o castanheiro centenário, retorcido, e descendo o caminho de terra batida, aquele que revela, por entre as árvores, o telhado roto do velho moinho abandonado, quando começamos a ouvir o murmurejar da cachoeira acima do zumbido dos insectos, e o roçagar do vento que sacode os ramos nas copas das árvores.
Depois, ao fundo, salta-se o muro rasteiro que em tempos foi fronteira de território proibido, e atravessa-se o descampado, com cuidado para não enterrarmos os pés nas covas das toupeiras, lembras-te? Ainda lá estão as covas, e a mesma cautela a caminhar, para não se torcer o pé. E passamos pela sebe natural de silvas, tão alta e arrogante como dantes, onde arranhei um dia os braços e rasguei a camisa que depois beijaste, como se os teus beijos fossem remendos e conseguissem sarar as cicatrizes do pano.
Ainda lá está o salgueiro choramingas, como lhe chamavas, porque os ramos compridos a penderem sobre o rio te pareciam fios de lágrimas suspensos no ar e no tempo. Ainda te recordas do tronco triste, marcado por sulcos e rugas de gente velha, inclinado para a água, os ramos esticados como braços? O mesmo tronco onde cravei as nossas siglas com a minha navalha de descascar maçãs,
p + s = Amor
que coisa tão pirosa me havia de dar para fazer, mas tu sorriste perante o vandalismo, e eu confiei no teu sorriso porque sempre me bateste aos pontos a matemática, e não fizeste reparos à equação impossível que tinha acabado de eternizar, à custa de lascas espetadas nos dedos. Demorei tanto tempo a escrever o nosso amor simples, e tu sorriste por uns segundos, era tudo o que me bastava, então.
O rio ainda corre devagar, tão devagar que parece feito de águas paradas, e ainda vivem os alfaiates à sombra do salgueiro chorão, a cortarem a superfície sem descanso, tão impossíveis de apanhar como dantes. E eu sentei-me na pedra grande e chorei como o salgueiro, porque também as nossas vidas correram, correram, correram, mas a minha parece nunca ter saído deste sítio, da sombra destes ramos que caem sem nunca alcançarem o rio, da memória dos teus seios expostos às minhas mãos esganadas, das tardes feitas de gemidos e suspiros, os corpos a cheirarem a verde de tanto rolarem pelo chão.
Quando jurámos que nos haveríamos de amar enquanto o salgueiro pranteasse sobre o espelho da corrente, nem nos passou pela cabeça a tolice do que dizíamos, tão tontos como os nomes rasgados na casca da árvore. Tu prometias-me os teus seios e eu acreditava, tal era a febre que sentia a varar-me o corpo, e eu anunciava que era teu, a começar pelas mãos desbravadoras, a acabar no cabelo despenteado e coberto de folhas, todo nu e todo teu, para sempre, debaixo do salgueiro chorão.
Muitos anos depois, muitos corpos suados em camas desfeitas depois, lembrei-me de ti e julguei ter faltado à promessa que te fiz, sem roupa, sem mentiras. Agora que me sento aqui, nesta pedra, e apoio o corpo numa árvore que já nos esqueceu,
mas ainda lá está a equação
e ouço mais uma vez a azáfama das libelinhas e das cigarras, enquanto as lágrimas secam e a dor foge para dentro do peito, outra vez, acho que não, afinal não, cada vez me convenço mais que as promessas feitas quando somos novos e nos refastelamos nus, por entre as ervas, são as que contam.
Ouço um restolhar atrás de mim e viro-me, em sobressalto, quase acredito que és tu, a cumprir o acordo que fizemos há tanto tempo, afinal vens consumar a tua parte do contrato. Mas não, é apenas o vento que sacode as folhas e levanta grãos de poeira no ar. Sou como o agricultor andarilho que morreu a olhar para as cinzas da lareira apagada: tenho um pé no mundo e outro debaixo do salgueiro que chora, chora, ao pé de ti.
Se calhar ainda não nos esqueceu.