terça-feira, janeiro 30, 2007

Leituras X


Demented Angel by Annette Fournet


“Tom deixou cair o saco das compras no regaço da mulher roliça. Clay nem reparara que o amigo pegara nele. A seguir tirou a Bíblia a Alice, pegou numa das mãos enfeitadas de anéis da mulher e enfiou-a nela com um gesto brusco. Começou a afastar-se, mas voltou para trás.

- Tom, já chega – insistiu Clay.

Tom não deu mostras de o ter ouvido. Inclinou-se para a mulher sentada no chão, e apoiou as mãos nos joelhos; aos olhos de Clay, a gordinha de óculos a olhar para cima e o homenzinho de óculos dobrado para a frente pareciam figuras de uma paródia às primeiras ilustrações dos romances de Charles Dickens.

- Um conselho, irmã – disse Tom. – A polícia já não vos protegerá como fez quando a senhora e as suas amigas hipócritas e beatas se manifestaram contra os centros de planeamento familiar ou a Clínica Emily Cathcart em Waltham…

- Aquela fábrica de abortos! – retorquiu-lhe ela, com desprezo, erguendo depois a Bíblia como para suster um golpe.

Tom não lhe bateu, no entanto sorria ameaçadoramente.

- Nada sei acerca da Taça da Insanidade, mas olhe que esta noite andam aí muitos malucos. Quer que eu seja claro? Os leões fugiram das jaulas e a senhora ainda pode vir a descobrir que eles primeiro comem os cristãos desbocados. O seu direito de expressão foi cancelado às três da tarde. Fica avisada. – Olhou de Alice para Clay, e este reparou que o lábio superior lhe tremia ao de leve. – Vamos?

- Vamos – concordou Clay.

- Caramba – exclamou Alice ao retomarem o caminho do desvio para a Salem Street, deixando os «Grandes Descontos nas Bebidas de Mister Big» para trás. – Foi criado com alguma destas pessoas?

- A minha mãe e ambas as irmãs – respondeu Tom. – Igreja do Meu Deus Redentor. Tomaram Jesus como seu salvador e a Igreja tomou-as como suas idiotas.

- Onde está a sua mãe? – quis saber Clay.

Tom olhou-o de relance.

- No céu. A não ser que também a tenham enganado nessa. O que eu acho que os estupores fizeram de certeza.”

Stephen King, Cell A Chamada da Morte, Bertrand Editora, 2006, páginas 74 e 75

quarta-feira, janeiro 24, 2007

O Acordo



Estive lá no outro dia, sabes? Depois da bifurcação ao lado da casa que pertenceu ao agricultor que viveu a vida inteira com um pé na aldeia e o outro no mundo, mas morreu só,

e agora é a casa que morre só, vazia e empoeirada

passando o castanheiro centenário, retorcido, e descendo o caminho de terra batida, aquele que revela, por entre as árvores, o telhado roto do velho moinho abandonado, quando começamos a ouvir o murmurejar da cachoeira acima do zumbido dos insectos, e o roçagar do vento que sacode os ramos nas copas das árvores.

Depois, ao fundo, salta-se o muro rasteiro que em tempos foi fronteira de território proibido, e atravessa-se o descampado, com cuidado para não enterrarmos os pés nas covas das toupeiras, lembras-te? Ainda lá estão as covas, e a mesma cautela a caminhar, para não se torcer o pé. E passamos pela sebe natural de silvas, tão alta e arrogante como dantes, onde arranhei um dia os braços e rasguei a camisa que depois beijaste, como se os teus beijos fossem remendos e conseguissem sarar as cicatrizes do pano.

Ainda lá está o salgueiro choramingas, como lhe chamavas, porque os ramos compridos a penderem sobre o rio te pareciam fios de lágrimas suspensos no ar e no tempo. Ainda te recordas do tronco triste, marcado por sulcos e rugas de gente velha, inclinado para a água, os ramos esticados como braços? O mesmo tronco onde cravei as nossas siglas com a minha navalha de descascar maçãs,

p + s = Amor

que coisa tão pirosa me havia de dar para fazer, mas tu sorriste perante o vandalismo, e eu confiei no teu sorriso porque sempre me bateste aos pontos a matemática, e não fizeste reparos à equação impossível que tinha acabado de eternizar, à custa de lascas espetadas nos dedos. Demorei tanto tempo a escrever o nosso amor simples, e tu sorriste por uns segundos, era tudo o que me bastava, então.

O rio ainda corre devagar, tão devagar que parece feito de águas paradas, e ainda vivem os alfaiates à sombra do salgueiro chorão, a cortarem a superfície sem descanso, tão impossíveis de apanhar como dantes. E eu sentei-me na pedra grande e chorei como o salgueiro, porque também as nossas vidas correram, correram, correram, mas a minha parece nunca ter saído deste sítio, da sombra destes ramos que caem sem nunca alcançarem o rio, da memória dos teus seios expostos às minhas mãos esganadas, das tardes feitas de gemidos e suspiros, os corpos a cheirarem a verde de tanto rolarem pelo chão.

Quando jurámos que nos haveríamos de amar enquanto o salgueiro pranteasse sobre o espelho da corrente, nem nos passou pela cabeça a tolice do que dizíamos, tão tontos como os nomes rasgados na casca da árvore. Tu prometias-me os teus seios e eu acreditava, tal era a febre que sentia a varar-me o corpo, e eu anunciava que era teu, a começar pelas mãos desbravadoras, a acabar no cabelo despenteado e coberto de folhas, todo nu e todo teu, para sempre, debaixo do salgueiro chorão.

Muitos anos depois, muitos corpos suados em camas desfeitas depois, lembrei-me de ti e julguei ter faltado à promessa que te fiz, sem roupa, sem mentiras. Agora que me sento aqui, nesta pedra, e apoio o corpo numa árvore que já nos esqueceu,

mas ainda lá está a equação

e ouço mais uma vez a azáfama das libelinhas e das cigarras, enquanto as lágrimas secam e a dor foge para dentro do peito, outra vez, acho que não, afinal não, cada vez me convenço mais que as promessas feitas quando somos novos e nos refastelamos nus, por entre as ervas, são as que contam.

Ouço um restolhar atrás de mim e viro-me, em sobressalto, quase acredito que és tu, a cumprir o acordo que fizemos há tanto tempo, afinal vens consumar a tua parte do contrato. Mas não, é apenas o vento que sacode as folhas e levanta grãos de poeira no ar. Sou como o agricultor andarilho que morreu a olhar para as cinzas da lareira apagada: tenho um pé no mundo e outro debaixo do salgueiro que chora, chora, ao pé de ti.

Se calhar ainda não nos esqueceu.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Ramadão (por Neil Gaiman) ~ Post Script


There were paths through the palace that none but Haroun Al Raschid knew; and this was because those who had drawn up the plans, and those who had built the paths, had all long since gone to their final reward: for it is seldom healthy to know the secrets of a king.”

A história “Cerements”, publicada no número 55 da revista Sandman e editada posteriormente na colectânea “Worlds End” fala-nos de uma cidade apropriadamente chamada Necropolis, onde todos os seus habitantes se dedicam à arte do enterro dos mortos, conhecendo e estudando incontáveis formas de realizar este acto tão profundamente simbólico e catársico.

Esta história é contada por um dos alunos da escola mortuária (à falta de melhor termo), que é obrigado a prestar assistência num enterro aéreo* onde, como parte da cerimónia, os participantes devem comer e contar histórias. Uma das histórias, contada por um dos assistentes, relata o seu encontro com um estranho viajante que lhe contou a história da fundação da cidade, sobre as cinzas da Necrópolis que existia anteriormente e que foi destruída graças ao desleixo e soberba dos seus habitantes.

Outra história, contada pelo mestre da execução do enterro aéreo*, relata a sua própria vivência de aprendiz, com a mestra madame Veltis, que um dia lhe contou a história de como ficou com a mão direita paralisada – rígida e roxa – depois de perder-se mas catacumbas da cidade, quando ela própria era uma aprendiz.

Atente-se ao imbricado preciosismo com que Gaiman constrói esta narrativa: uma história contada por uma mulher, que por sua vez é um personagem numa história contada por um homem, que é também um personagem na história contada por um jovem aprendiz, sendo igualmente um personagem na história que Neil Gaiman nos está a contar. Fabuloso. Esta abordagem em camadas, tipo “cebola” ou “matrioska” é uma técnica recorrente no estilo deste autor que se assume, mais que tudo, como um contador de histórias.

Em “Ramadão” podemos encontrar esta técnica de histórias dentro da história, principalmente na passagem do mercado, quando os personagens passeiam descontraidamente e são abordados pelos mercadores, cada um deles com histórias para contar. E, naturalmente, na própria narrativa como um todo: quando lemos a passagem inicial (“In the name of Allah, the compassionate, the all-merciful, I tell my tale. For there is no God but Allah, and Mohammed is his Profet”) percebemos que o que se vai passar a seguir está a ser contado por alguém, na senda das tradições antigas, mas assumimos que a frase inicial é apenas uma forma rebuscada do próprio autor nos apresentar ao relato de Haroun Al-Raschid, califa de Bagdad. Só no fim percebemos que na verdade é uma história contada por um mendigo a uma criança, na Bagdad dos dias actuais.

Ramadão” foi publicado por alturas da primeira guerra do golfo, e tornou-se o número com mais sucesso da série, como já mencionei. Lendo a história no seu formato original (e não na pobre versão que apresentei), é fácil perceber porquê: para além de lidar com temas de fantasia misturados com personagens e locais reais, Neil Gaiman mergulha fundo no universo mágico das mil e uma noites, e confere a toda a narrativa o ritmo próprio de um sonho, ao mesmo tempo que nos fornece uma explicação plausível (sendo que plausibilidade é aqui apresentada de uma forma bastante relativa) para o declínio de Bagdad; na verdade, é maravilhoso acreditar que esta Bagdad que vemos agora, tão terrivelmente massacrada pelo ódio e ganância dos seres humanos, é apenas um resquício sujo da verdadeira Bagdad, resplandecente e idílica, que vive nos sonhos, e vai durar eternamente.

Foi difícil trazer este sonho de Neil Gaiman para o formato de texto corrido, e receio bem que o meu trabalho fique muito aquém do esperado, se comparado com o original. Mas procurei ao máximo manter-me fiel ao estilo do autor, e posso dizer que foi um trabalho de amor e respeito. Espero que as ilustrações que fui colocando agucem o apetite para a leitura da obra original, mesmo porque a compilação “Fables and Reflections” é toda ela constituída por estas pequenas histórias, sem nenhum fio narrativo superior, e pode servir como excelente elemento de apresentação ao universo do Sandman. E garanto que depois de lerem tudo, não vão descansar enquanto não adquirirem os restantes volumes.

Como prometido, aqui está o texto completo de "Ramadão", em formato PDF, para quem quiser ler de uma assentada (ou não, sempre são 26 páginas), com imagens e um tratamento gráfico mais elaborado:

Ramadão (por Neil Gaiman) em alta resolução (5 mb)

Ramadão (por Neil Gaiman) em baixa resolução (1,5 mb)

Julgo que clicando em qualquer dos links abrir-se-á o documento directamente na janela do browser, pelo que se quiserem guardá-lo no computador, o ideal será clicar com o botão direito no link pretendido, e escolher a opção "Guardar destino como..."). O ficheiro de alta resolução tem imagens com melhor qualidade, pelo que será preferível para opções de impressão.

Nota: Se quiserem imprimir o texto, recomendo que o façam a partir da página 3, até à página 25. É que as páginas 1 e 26 têm o fundo preto, e são passíveis de gastar todo o tinteiro da cor equivalente. Pelo menos sempre se poupa tinta.

A partir de agora encerra-se o capítulo “O porquê das coisas”, e passarei aos textos de produção própria, com as indispensáveis passagens favoritas dos livros que ando a ler actualmente a servirem de intervalo retemperador. Tenho sentido muita falta da escrita ultimamente, mas também tenho chegado tão cansado a casa que nem forças consigo reunir para me sentar no computador. Mas prometo continuar a publicar, com a mesma irregularidade de sempre.

Boa noite, e bons sonhos

PS – *Existem cinco métodos aprovados de disposição dos corpos: 1 - Enterro terreno ou internamento (variantes: encaixotado, enfaixado ou nú; embalsamado ou similar; deitado, sentado ou de pé; campa, sepulcro, tumba ou mausoléu); 2 – Consumição pelo fogo (variantes: vestido, encaixotado, pira, barco ou navio; existem diferentes procedimentos a ser adoptados para a disposição das cinzas); 3 – Mumificação (variantes: salmoura, banhos minerais, desidratação, betumação, etc); 4 – Enterro aquático (variantes: alimento a animais aquáticos ou peixes; disposição em rio sagrado ou mar, encaixotado, ensacado com pedras, desmembramento); 5 - Enterro aéreo (variantes: desmembramento e similar; ingestão por aves necrófagas; disposição completa ou parcial).