segunda-feira, julho 17, 2006

Lugares de sonho I



No livro “Alta Fidelidade” de Nick Hornby, a dada altura vemos o personagem principal a tentar elaborar uma lista com os seus cinco empregos de sonho. O primeiro é, se a memória não me falha, ser jornalista da Rolling Stone entre 1972 e 1977 (os anos podem ser diferentes, não me apetece ir vasculhar os livros acumulados para conferir).

Cheguei hoje de uma viagem de três dias com a namorada (chuac!), da mui nobre e bela cidade de Viseu, pátria dos meus segundos passos da infância, que costumo visitar com alguma frequência, pois toda a família é de lá, e penso que poderemos aplicar um raciocínio similar aos nossos lugares de sonho.

Que todos temos, julgo. – Seja uma praia onde se passaram férias fantásticas, seja um local que se partilhou com alguém especial, seja o restaurante onde fomos pedidos (as) em casamento, ou aldeia onde crescemos, e até mesmo o chaparro debaixo do qual perdemos a virgindade. – Ou que, pelo menos tenho eu, e como tal os identifico. Embora não tenha perdido a virgindade debaixo de um chaparro (nem em cima, já agora).

O mal dos locais de sonho é a erosão do tempo. Não estou a falar da memória que eventualmente se desvanece, ou encapsula as recordações distantes numa forma de idílio celestial. Refiro-me ao desgaste físico, ou mesmo à destruição por mão humana. É assim que a praia que foi palco de um romance inesquecível, marcada por horas de namoro debaixo do pôr do sol, pode apresentar-se-nos, viajantes sedentos em busca do resgate de memórias saudosas, coberta de gaivotas histéricas, fruto da instalação recente de canos fétidos que desembocam na linha de água. E é uma desilusão.

Já passei por esse sentimento de perda demasiadas vezes; havia uma passagem na estrada velha que ligava Viseu a Vila Nova de Paiva, logo após uma curva ampla que concluía uma recta tão côncava como as dobras na virilha de uma mulher, que sempre considerei mágica: as árvores em volta da estrada quase que pareciam estar a dobrar-se, a quererem tocar-se através do espaço vazio, e formavam um longo túnel de verde frondoso que criava padrões de luz surreais nos dias solarengos. Foi com um constante pasmo de beleza, reverente respeito, que passei ali vezes sem conta, e foi com uma dor física no peito que verifiquei, há alguns anos, que um incêndio elevado a catástrofe reduzira aquele túnel, que nos abraçava com folhas, a uns poucos cotos enegrecidos nas margens do alcatrão. Ainda me dói quando lá passo, felizmente que construíram uma estrada alternativa.

Nessa mesma estrada (deverão já ter percebido que a própria estrada é para mim um local de sonho), quilómetros antes, há uma passagem que cruza com o rio Vouga, em forma de ponte em arco. A ponte eleva-se a uma altura respeitável sobre um desfiladeiro fundo, onde o rio cava, lá em baixo, o seu infindável caminho. Esse ponto do rio, há cerca de vinte, trinta anos, era bastante concorrido, e recordo-me de tardes alegres nas enseadas que então existiam, passadas com a família. Ainda sinto o cheiro do churrasco preparado ao ar livre, da fome de uma manhã passada a chapinhar atrás dos peixes.

Vieram entretanto as vias rápidas para o mar, as agências de viagens com pacotes turísticos pagos a prestações, a moda de ir para fora lá fora, e o local foi sendo progressivamente abandonado, deixado ao crescimento desenfreado das silvas e giestas. Só uns poucos resistentes voltavam ano após ano, e acreditem, havia bons motivos para isso: mesmo debaixo da ponte formava-se um pequeno açude convertido em piscina natural, que terminava numa escorregadia cachoeira que, por sua vez, era ladeada por enormes pedras que pareciam estar sempre em equilíbrio precário, e onde meia dúzia de banhistas estendiam as toalhas e se refastelavam como lagartos ao sol.

Admirava a beleza simples do local, a harmonia entre a cascata construída há décadas por mãos humanas e a beleza da natureza envolvente, que se tinha inteligentemente adaptado a uma arquitectura antiga feita de pedras empilhadas unidas com cimento grosso. Todas as casas das aldeias parecem habitar a paisagem como se tivessem sido feitas pela natureza, e aquela cachoeira dava a sensação de ter sido feita à custa do martelar constante da água, não destoava mais do que os rochedos gigantes. Foi sempre um local de sonho. Até lhe perdoei quando a minha irmã escorregou nas algas – e poderia ter sido muito mais grave – e ficou com um dedo virado ao contrário na mão que usou para se apoiar.

Frequentador assíduo do espaço, verifiquei como, de ano para ano, a minha toalha ia ficando mais sozinha na pedra gigante. Não me importei, e nem me preocupei se o motivo da falta de visitantes estaria de alguma forma relacionado com a qualidade da água. “Óptimo, mais sossego tenho”. E nunca deixei de voltar ao local, com a família, nos dias sufocantes do Verão.

Até há um par de anos, quando algumas mentes brilhantes – diria mesmo iluminadas – consideraram que seria uma excelente ideia encher o local de cimento em pontos estratégicos, desviar o curso da água lateralmente, promover a cascata a barragem à custa de quilos de massa, e, de uma forma geral, deformar completamente a paisagem, que passou de harmonia entre rochas, água e verde, a profusão de cinzento árido e água estagnada.

Porra.
(amanhã continuo)

4 comentários:

Flávio disse...

O meu lugar de sonho: o quarto de dormir, rodeado pelos livros e DVDs.

Sandman disse...

Com um grande ecrã de plasma na parede, e um sistema dolby surround estrategicamente distribuido pelas paredes, e um cartão multibanco bem recheado para abastecer o leitor de dvd's e as prateleiras... compreendo muito bem o que dizes, penso que também é um dos meus locais de sonho.

Mesmo sem essas coisas, o quarto é sempre um local de sonho (este foi o trocadilho inteligente insuportável da semana) :)

Anónimo disse...

*

Flávio disse...

looollll Juro que o trocadilho quarto de dormir / lugar de sonho foi completamente acidental e inconsciente. E quanto aos DVD's, é melhor nem falar: há meses que não compro um que seja, por razões financeiras. Nem sequer os Movimentos Perpétuos do Edgar Pêra. Um abraço!