quarta-feira, janeiro 24, 2007

O Acordo



Estive lá no outro dia, sabes? Depois da bifurcação ao lado da casa que pertenceu ao agricultor que viveu a vida inteira com um pé na aldeia e o outro no mundo, mas morreu só,

e agora é a casa que morre só, vazia e empoeirada

passando o castanheiro centenário, retorcido, e descendo o caminho de terra batida, aquele que revela, por entre as árvores, o telhado roto do velho moinho abandonado, quando começamos a ouvir o murmurejar da cachoeira acima do zumbido dos insectos, e o roçagar do vento que sacode os ramos nas copas das árvores.

Depois, ao fundo, salta-se o muro rasteiro que em tempos foi fronteira de território proibido, e atravessa-se o descampado, com cuidado para não enterrarmos os pés nas covas das toupeiras, lembras-te? Ainda lá estão as covas, e a mesma cautela a caminhar, para não se torcer o pé. E passamos pela sebe natural de silvas, tão alta e arrogante como dantes, onde arranhei um dia os braços e rasguei a camisa que depois beijaste, como se os teus beijos fossem remendos e conseguissem sarar as cicatrizes do pano.

Ainda lá está o salgueiro choramingas, como lhe chamavas, porque os ramos compridos a penderem sobre o rio te pareciam fios de lágrimas suspensos no ar e no tempo. Ainda te recordas do tronco triste, marcado por sulcos e rugas de gente velha, inclinado para a água, os ramos esticados como braços? O mesmo tronco onde cravei as nossas siglas com a minha navalha de descascar maçãs,

p + s = Amor

que coisa tão pirosa me havia de dar para fazer, mas tu sorriste perante o vandalismo, e eu confiei no teu sorriso porque sempre me bateste aos pontos a matemática, e não fizeste reparos à equação impossível que tinha acabado de eternizar, à custa de lascas espetadas nos dedos. Demorei tanto tempo a escrever o nosso amor simples, e tu sorriste por uns segundos, era tudo o que me bastava, então.

O rio ainda corre devagar, tão devagar que parece feito de águas paradas, e ainda vivem os alfaiates à sombra do salgueiro chorão, a cortarem a superfície sem descanso, tão impossíveis de apanhar como dantes. E eu sentei-me na pedra grande e chorei como o salgueiro, porque também as nossas vidas correram, correram, correram, mas a minha parece nunca ter saído deste sítio, da sombra destes ramos que caem sem nunca alcançarem o rio, da memória dos teus seios expostos às minhas mãos esganadas, das tardes feitas de gemidos e suspiros, os corpos a cheirarem a verde de tanto rolarem pelo chão.

Quando jurámos que nos haveríamos de amar enquanto o salgueiro pranteasse sobre o espelho da corrente, nem nos passou pela cabeça a tolice do que dizíamos, tão tontos como os nomes rasgados na casca da árvore. Tu prometias-me os teus seios e eu acreditava, tal era a febre que sentia a varar-me o corpo, e eu anunciava que era teu, a começar pelas mãos desbravadoras, a acabar no cabelo despenteado e coberto de folhas, todo nu e todo teu, para sempre, debaixo do salgueiro chorão.

Muitos anos depois, muitos corpos suados em camas desfeitas depois, lembrei-me de ti e julguei ter faltado à promessa que te fiz, sem roupa, sem mentiras. Agora que me sento aqui, nesta pedra, e apoio o corpo numa árvore que já nos esqueceu,

mas ainda lá está a equação

e ouço mais uma vez a azáfama das libelinhas e das cigarras, enquanto as lágrimas secam e a dor foge para dentro do peito, outra vez, acho que não, afinal não, cada vez me convenço mais que as promessas feitas quando somos novos e nos refastelamos nus, por entre as ervas, são as que contam.

Ouço um restolhar atrás de mim e viro-me, em sobressalto, quase acredito que és tu, a cumprir o acordo que fizemos há tanto tempo, afinal vens consumar a tua parte do contrato. Mas não, é apenas o vento que sacode as folhas e levanta grãos de poeira no ar. Sou como o agricultor andarilho que morreu a olhar para as cinzas da lareira apagada: tenho um pé no mundo e outro debaixo do salgueiro que chora, chora, ao pé de ti.

Se calhar ainda não nos esqueceu.

4 comentários:

Anónimo disse...

Delicioso de se ler... mágico, apesar de triste...

Já tinha saudades de Te ler :)

Feliz 2007 para ti ! :)

Sandman disse...

Olá Mina... às vezes julgo estar a escrever tratados analíticos situacionais sobre a tristeza, o que me parece estranho porque, pelo menos nos assuntos que abordo, tudo me corre lindamente.

A ideia de ausência, abandono, saudade, ou perca, são temas a que recorro muitas vezes... talvez por já ter vivido momentos desses, talvez por saber que esses momentos estão a um simples acaso das nossas vidas, ou então é mesmo por ter o hábito de ouvir músicas calmas e quase sempre depressivas, quando escrevo. Se começasse a ouvir Gothic Metal de certeza que o tom mudava :) (Por acaso tenho um fascínio imenso pela sub-cultura gótica.)

Acordei ontem de um semi-adormecimento meio sobressaltado, com uma ideia quase perfeitamente elaborada na mente. Tão chata que não descansei enquanto a não consegui passar em forma resumida para o papel. É uma ideia ligeiramente cómica, tentarei dar-lhe forma este fim de semana (sem promessas, no entanto - já vivo comigo há 34 anos para saber o que a casa gasta :)

Um 2007 de amor e alegria para ti... se tiveres isso pouco mais haverá a desejar. :)

Patrícia disse...

Lindíssimo.
Não retratando a tua realidade presente, concretizas emoções passadas e traduzes pensamentos de estranhos.

E tudo o mais que poderia dizer (e que mereces que seja dito) não tomará hoje forma.

Não conseguia vir ao teu blog porque o link no meu tinha um erro (uma barra a mais que apareceu recentemente, não faço ideia como). Agora que percebi que não apagaste o blog nem mudaste de morada, regresso a esta casa querida. :)

Beijo, Sandman. E que o Amor não mais te abandone (haja sempre quem o venere como tu! E eu...)

Sandman disse...

Ainda bem que regressas, Patrícia, e como sempre, tens o tapete vermelho à porta, e um delicioso cesto de bombons, pousado no contador da entrada, feito exclusivamente com produtos de origem vegetal, só para ti :)

:)

Obrigado pelos votos, que multiplico, elevo ao cubo, e devolvo. Sejamos ambos poetas do amor, tão líricos e apaixonados como bêbados que choram o sentimento e cantam na rua à luz dos lampiões. :)

Beijos