“There were paths through the palace that none but Haroun Al Raschid knew; and this was because those who had drawn up the plans, and those who had built the paths, had all long since gone to their final reward: for it is seldom healthy to know the secrets of a king.”
A história “Cerements”, publicada no número 55 da revista Sandman e editada posteriormente na colectânea “Worlds End” fala-nos de uma cidade apropriadamente chamada Necropolis, onde todos os seus habitantes se dedicam à arte do enterro dos mortos, conhecendo e estudando incontáveis formas de realizar este acto tão profundamente simbólico e catársico.
Esta história é contada por um dos alunos da escola mortuária (à falta de melhor termo), que é obrigado a prestar assistência num enterro aéreo* onde, como parte da cerimónia, os participantes devem comer e contar histórias. Uma das histórias, contada por um dos assistentes, relata o seu encontro com um estranho viajante que lhe contou a história da fundação da cidade, sobre as cinzas da Necrópolis que existia anteriormente e que foi destruída graças ao desleixo e soberba dos seus habitantes.
Outra história, contada pelo mestre da execução do enterro aéreo*, relata a sua própria vivência de aprendiz, com a mestra madame Veltis, que um dia lhe contou a história de como ficou com a mão direita paralisada – rígida e roxa – depois de perder-se mas catacumbas da cidade, quando ela própria era uma aprendiz.
Atente-se ao imbricado preciosismo com que Gaiman constrói esta narrativa: uma história contada por uma mulher, que por sua vez é um personagem numa história contada por um homem, que é também um personagem na história contada por um jovem aprendiz, sendo igualmente um personagem na história que Neil Gaiman nos está a contar. Fabuloso. Esta abordagem em camadas, tipo “cebola” ou “matrioska” é uma técnica recorrente no estilo deste autor que se assume, mais que tudo, como um contador de histórias.
Em “Ramadão” podemos encontrar esta técnica de histórias dentro da história, principalmente na passagem do mercado, quando os personagens passeiam descontraidamente e são abordados pelos mercadores, cada um deles com histórias para contar. E, naturalmente, na própria narrativa como um todo: quando lemos a passagem inicial (“In the name of Allah, the compassionate, the all-merciful, I tell my tale. For there is no God but Allah, and Mohammed is his Profet”) percebemos que o que se vai passar a seguir está a ser contado por alguém, na senda das tradições antigas, mas assumimos que a frase inicial é apenas uma forma rebuscada do próprio autor nos apresentar ao relato de Haroun Al-Raschid, califa de Bagdad. Só no fim percebemos que na verdade é uma história contada por um mendigo a uma criança, na Bagdad dos dias actuais.
“Ramadão” foi publicado por alturas da primeira guerra do golfo, e tornou-se o número com mais sucesso da série, como já mencionei. Lendo a história no seu formato original (e não na pobre versão que apresentei), é fácil perceber porquê: para além de lidar com temas de fantasia misturados com personagens e locais reais, Neil Gaiman mergulha fundo no universo mágico das mil e uma noites, e confere a toda a narrativa o ritmo próprio de um sonho, ao mesmo tempo que nos fornece uma explicação plausível (sendo que plausibilidade é aqui apresentada de uma forma bastante relativa) para o declínio de Bagdad; na verdade, é maravilhoso acreditar que esta Bagdad que vemos agora, tão terrivelmente massacrada pelo ódio e ganância dos seres humanos, é apenas um resquício sujo da verdadeira Bagdad, resplandecente e idílica, que vive nos sonhos, e vai durar eternamente.
Foi difícil trazer este sonho de Neil Gaiman para o formato de texto corrido, e receio bem que o meu trabalho fique muito aquém do esperado, se comparado com o original. Mas procurei ao máximo manter-me fiel ao estilo do autor, e posso dizer que foi um trabalho de amor e respeito. Espero que as ilustrações que fui colocando agucem o apetite para a leitura da obra original, mesmo porque a compilação “Fables and Reflections” é toda ela constituída por estas pequenas histórias, sem nenhum fio narrativo superior, e pode servir como excelente elemento de apresentação ao universo do Sandman. E garanto que depois de lerem tudo, não vão descansar enquanto não adquirirem os restantes volumes.
Como prometido, aqui está o texto completo de "Ramadão", em formato PDF, para quem quiser ler de uma assentada (ou não, sempre são 26 páginas), com imagens e um tratamento gráfico mais elaborado:
Ramadão (por Neil Gaiman) em alta resolução (5 mb)
Ramadão (por Neil Gaiman) em baixa resolução (1,5 mb)
Julgo que clicando em qualquer dos links abrir-se-á o documento directamente na janela do browser, pelo que se quiserem guardá-lo no computador, o ideal será clicar com o botão direito no link pretendido, e escolher a opção "Guardar destino como..."). O ficheiro de alta resolução tem imagens com melhor qualidade, pelo que será preferível para opções de impressão.
Nota: Se quiserem imprimir o texto, recomendo que o façam a partir da página 3, até à página 25. É que as páginas 1 e 26 têm o fundo preto, e são passíveis de gastar todo o tinteiro da cor equivalente. Pelo menos sempre se poupa tinta.
A partir de agora encerra-se o capítulo “O porquê das coisas”, e passarei aos textos de produção própria, com as indispensáveis passagens favoritas dos livros que ando a ler actualmente a servirem de intervalo retemperador. Tenho sentido muita falta da escrita ultimamente, mas também tenho chegado tão cansado a casa que nem forças consigo reunir para me sentar no computador. Mas prometo continuar a publicar, com a mesma irregularidade de sempre.
Boa noite, e bons sonhos
PS – *Existem cinco métodos aprovados de disposição dos corpos: 1 - Enterro terreno ou internamento (variantes: encaixotado, enfaixado ou nú; embalsamado ou similar; deitado, sentado ou de pé; campa, sepulcro, tumba ou mausoléu); 2 – Consumição pelo fogo (variantes: vestido, encaixotado, pira, barco ou navio; existem diferentes procedimentos a ser adoptados para a disposição das cinzas); 3 – Mumificação (variantes: salmoura, banhos minerais, desidratação, betumação, etc); 4 – Enterro aquático (variantes: alimento a animais aquáticos ou peixes; disposição em rio sagrado ou mar, encaixotado, ensacado com pedras, desmembramento); 5 - Enterro aéreo (variantes: desmembramento e similar; ingestão por aves necrófagas; disposição completa ou parcial).
3 comentários:
Este último ps é precioso... ehehehe!;)
:)
Curti, curti. Te sigo, pois sei quanto é difícil ter seguidores HDSHDHSHD,hm, dá uma olhada no meu blog? haha http://pvirgula2.blogspot.com/
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