sexta-feira, julho 21, 2006

Lugares de sonho II


(continuando)

Trata-se, portanto, de uma colisão entre a realidade vivida e imaginada com a realidade existente. Digo vivida e imaginada porque nunca os nossos lugares de sonho foram tão perfeitos na altura em que os frequentámos, como quando agora os imaginamos; existe sempre uma cortina de idílio que cobre o véu das recordações, e esconde as arestas mal entalhadas da paisagem; é assim que sei que o recanto debaixo da ponte até era um pouco desconfortável, com todos aqueles mosquitos e moscardos em busca de carne quentinha para aferroarem as suas presas. E a pedra onde estendia a toalha também ficava a dever um pouco ao conforto de um espaço de terra macia coberta de relva.

Mas era o meu lugar de sonho, na medida em que passei lá muitas boas tardes, que agora procuro resgatar da memória.

Assim, como o personagem do romance de Nick Hornby que ansiava por um emprego numa moldura temporal específica, também acredito que há locais que apenas podemos encontrar num determinado tempo: são os nossos lugares de sonho. Já não existem na esfera material da realidade presente, porque dificilmente conseguiremos reunir todas as condições para que os mesmos sentimentos – recordações – sejam sentidos espontaneamente.

O que não deixa de me provocar certa tristeza, pois relembrar momentos felizes do passado significa assumir que nunca mais poderemos existir naquela série de circunstâncias, e estamos voluntariamente a dizer a nós mesmos que aquela felicidade não volta mais. E não volta mesmo. São lugares de sonho porque permanecem apenas nos sonhos, e só os evocamos num determinado tempo, que, como todo o tempo do mundo, correu, correu, gastou-se e passou, sem olhar para trás.

Quem conseguirá ficar totalmente feliz, depois de ter vivido momentos felizes, mesmo que agora esteja a viver outros momentos felizes? A lembrança da felicidade passada não trará apenas um certo amargo aos dias presentes? Poderemos verdadeiramente congratularmo-nos por uma infância alegre, despreocupada, se o próprio facto de a estarmos a recordar significa que – melancolicamente falando – nunca mais os dias serão assim tão inconsequentes? Porque será que fico triste quando me lembro de quão pouco triste era?

Arquivamos essas memórias como livros na prateleira, que servem como reconforto de uma vida plena mas também como monumento à perenidade das coisas: tudo acaba, tudo chega ao seu termo, nada volta ao que era. Tentar resgatar isso apenas introduz um elemento de anormalidade na vida, porque não podemos regredir no tempo, e já não somos as mesmas pessoas que viveram aqueles momentos. Crescemos, evoluímos, e como cobras que despem a pele que já não lhes serve, como uma meia velha, também nós temos que descartar certas vivências, e atirá-las para um poço de lembranças.

Estes três dias que passei em Viseu serão, no futuro, um lugar de sonho: Viseu, entre 14 e 16 de Julho de 2006. Foi um tempo e um local onde me entreguei por completo à despreocupada felicidade, mesmo tendo alguns maus augúrios a ensombrarem-me o céu sem nuvens. Foram dias de jantar na esplanada de um restaurante na zona antiga da Sé, ao som de um concerto ao vivo dos Fingertips a vinte metros das mesas, depois de uma tarde quente dividida entre o repouso na relva fofa e o mergulhar na água fresca. Foram fins de tarde carinhosos com alguém que muito amo na varanda de casa, por entre goles de cerveja e festas ao gato que ofereci à minha sobrinha, ao som da mais acertada escolha de músicas da RFM que já presenciei.

E foram também os dias da desilusão do encontro com o monstro de cimento que o rio debaixo da ponte se tornou, mas também dias mágicos de descoberta da ponte romana, mais adiante, que conduz a outra enseada verdejante, igualmente bela.

São assim os meus lugares de sonho. Existem apenas geográfica e temporalmente precisos em momentos que não se repetem, mas que melhoram com o passar dos anos. Pertencem ao mapa e ao calendário, o que os torna ainda mais distantes daquilo que sou agora. Posso esquecê-los, eventualmente, mas não são esquecidos. Evoluem, como eu.

Este post também evoluiu para direcções diferentes daquelas que eu imaginava levá-lo. Queria que tivesse saído um pouco mais poético, porque era esse o meu estado de espírito quando me decidi a escrevê-lo, e espero bem que me sirva de lição: nunca adiar a escrita quando ela quer ser escrita. Serve no entanto de aviso à navegação, pois amanhã por esta hora estarei a rumar para um lugar de sonho (Vila Real de Santo António, entre 22 e 28 de Julho de 2006), o que significa que privarei os meus três ou quatro leitores e leitoras do aborrecimento de lerem monólogos fastidiosos e intermináveis durante alguns breves dias :).

Até lá, boa noite, e bons sonhos.

1 comentário:

Flávio disse...

Para mim, toda a cidade de Berlim é um lugar de sonho, mesmo nos sítios que alegadamente nada têm de excepcional ou interessante. É uma cidade feita à minha medida: ruas limpinhas, pessoas educadas, muitas bicicletas, cinemas excelentes e lojas de todos os países do mundo.