segunda-feira, abril 16, 2007

Leituras XI



“Penso que é tempo de termos uma pequena conversa. Estão confortavelmente sentados? Vou começar, então…

Calculo que estejam a perguntar-se porque motivo foram chamados aqui, esta tarde. Bem, como vêem, não estou inteiramente satisfeito com a vossa performance ultimamente. Receio que o vosso trabalho esteja a piorar e…

…e, bem, receio que estejamos a pensar seriamente em dispensá-los.

Oh, eu sei, eu sei, vocês já estão na empresa há muito tempo. Quasedeixem-me pensar. Quase dez mil anos! Palavra de honra, o tempo voa, não acham? Parece que foi ontem… recordo-me perfeitamente do dia em que começaram as vossas funções, a balançarem-se das árvores, inexperientes e nervosos, um osso apertado nos punhos encrespados…

Por onde começamos, senhor?’ vocês perguntaram, submissos.

Percorremos juntos um longo caminho, não é verdade? E sim, sim, estão correctos, em todos estes dias não faltaram uma única vez. Muito bem, meus bons e fiéis servos. Por favor não pensem que me esqueci do vosso extraordinário serviço, e de todas as inestimáveis contribuições que deram à empresa… o fogo, a roda, agricultura… é uma lista impressionante, meus caros. Uma lista deveras impressionante, não me interpretem mal.

Mas… bem… para ser sincero, também tivemos os nossos problemas. Não vale a pena tentar esconder isso. Sabem de onde penso que nascem estes problemas? Eu digo-vos… é da vossa básica falta de vontade de prosseguirem com a empresa. Vocês não parecem ter desejo algum de encarar qualquer tipo de verdadeira responsabilidade, ou de serem os vossos próprios patrões. Deus sabe que já vos deram oportunidades suficientes. Já vos oferecemos promoções por mais do que uma vez, e a cada uma delas vocês acabam por recusar. ‘Não conseguíamos fazer o trabalho, chefe’ choramingaram, ‘Nós sabemos qual é o nosso lugar.’

Para ser sincero, não estão realmente a tentar, pois não?

Sucede que vocês estão paralisados há demasiado tempo, e já se começa a notar no serviço. E se me permitem acrescentar, no vosso comportamento em geral. As disputas constantes no piso da fábrica não escaparam à nossa atenção. Nem as erupções de desordem no pessoal da cantina. E depois, claro, há… hmmm, bem, eu realmente não queria trazer isto ao de cima mas tenho ouvido alguns rumores perturbadores sobre a vossa vida pessoal. Não, não importa quem me contou. Pelo que percebi, são incapazes de se darem com os vossos conjugues. Ouvi dizer que discutem, que gritam. Actos violentos foram mencionados. Estou informado por fontes seguras que vocês sempre magoam aqueles que amam. Aqueles que nunca deveriam magoar.

E em relação às crianças? São sempre as crianças que sofrem, como vocês bem sabem. Pobres pequenos. O que é que eles podem fazer?

E não vale a pena colocarem as culpas da quebra nos padrões do serviço na má gestão, embora a gestão seja péssima. De facto, não vamos estar com rodeios: a gestão é terrível. Tivemos uma série de corruptos, fraudes, mentirosos, e lunáticos a tomarem uma série de decisões catastróficas. Isto é simples facto.

Mas quem os elegeu?

Foram vocês. Vocês que nomearam estas pessoas. Vocês que lhes deram o poder para tomarem as decisões no vosso lugar. Embora admita que qualquer um possa cometer um erro ocasionalmente, continuar a cometer os mesmos erros século após século não me parece nada menos do que deliberado. Vocês encorajaram estes maldosos incompetentes que transformaram a vossa vida e trabalho numa ruína. Vocês aceitaram sem questionar as suas ordens desprovidas de sentido. Vocês poderiam tê-los parado. Tudo o que precisavam de dizer era ‘Não’.

Vocês não têm espinha. Vocês não têm orgulho.

Vocês deixaram de ser uma mais valia para a empresa.”

Alan Moore, V For Vendetta, Vertigo, 2005. Ilustrações de David Lloyd.

Esta é uma tradução amadora do fantástico texto de Alan Moore, que pode ser lido na íntegra e na sua versão original aqui. Para informações adicionais sobre este excelente livro em banda desenhada, visitem este site.

Infelizmente, emprestei a minha cópia a um amigo, e não quero estar a escrever de memória, mas pretendo um dia destes escrever um post próprio sobre esta obra (e outras, de Alan Moore). Até lá, se tiverem oportunidade, leiam o livro. Nunca mais vão encarar a banda desenhada da mesma forma.

4 comentários:

Patrícia disse...

Eu vi o filme... serve? ;) É que eu e a BD nunca fomos muito próximos...

Espero que regresses agora em força. :)

Beijos, Sandman

Sandman disse...

Na verdade nunca desapareço para muito longe, Patrícia, pelo que o regresso nunca será muito em força. :)

O que sucede é que nunca me propus a ter um daqueles blogs de posts quantas vezes minimalistas diários e ininterruptos (nada contra esses blogs, até porque quero fazer uma experiência dessas no mês do aniversário dos nossos blogs). Este espaço serve para colocar os meus textos e reflexões, mas à minha medida: longas diatribes sem fim onde testo os limites do que escrevo, e, esperando e sonhando, faço sonhar um pouco quem lê. Assim sendo, nunca poderão os posts ser frequentes, embora o meu desejo fosse, no menos dos menos, colocar um por semana.

Estas pausas mais ou menos prolongadas não se devem a falta de ideias, muito pelo contrário: passo dias e dias a remoer histórias, mas tenho muito pouco tempo para as passar à folha em branco. Os meus dias estão tão preenchidos que não me deixam tempo para mais nada, e à noite, a minha hora favorita de escrever, estou quase sempre demasiado cansado para olhar sequer para o teclado. Neste últimos tempos, embarquei numa viagem pessoal e profissional que me absorve completamente (de que te falarei a posteriori), e a escrita ficou em semi-pausas, mas continuarei a escrever como sempre, e a actualizar como sempre. Posso é demorar um pouco mais.

Bjs

Patrícia disse...

E eu tenho de me desculpar pela indesculpável demora na resposta a algo que me fez tão bem. Obrigada :)

Beijo grande

Flávio disse...

Confesso que o meu conhecimento da obra do Moore ainda é um pouco superficial, mas já li coisas magníficas do senhor. É uma personalidade fascinante. Eu diria que o seu talento está no que poderíamos chamar de 'erudição pop', um conhecimento profundíssimo da cultura popular, que ele sabe aproveitar maravilhosamente e adaptar com sucesso ao público dos nossos dias.