terça-feira, julho 04, 2006

O sobrevivente


15 minutos atrás. Estou a chegar a casa. Na rua paralela à da minha humilde residência sou bloqueado pelo camião do lixo, e municio-me de paciência, pois já sei, de encontros anteriores, que ainda vou apanhar mais três contentores carregados de dejectos citadinos, antes de chegar ao cruzamento onde posso virar, e afastar-me do mamarracho de ferro. Não tenho hipótese de fuga, a rua é estreita, de paralelos, revestida de carros estacionados de ambos os lados. Mais vale acender um cigarro, e esperar.

Admiro a profissão dos homens do lixo; têm um trabalho duro, odorífero, e deve dificultar sobremaneira os engates, depois de lhes perguntarem o que fazem. São úteis, e condenados à incompreensão social.

Um dos contentores está mais cheio do que o normal, provavelmente alguma empresa que despejou o lixo acumulado do fim-de-semana. Observo a azáfama dos homens, entre o distraído e o atento à música na rádio, e reparo que um deles pára por momentos o que está a fazer, para observar o objecto que tem nas mãos: é um livro. Parece antigo, ainda do tempo em que as pessoas mandavam encadernar os livros com capas castanhas e letras a dourado, para aumentar a durabilidade, e desenhar uniformidade nas estantes da sala. Também tem um volume de páginas respeitável. Imagino que tipo de idiota achou que seria boa ideia atirar com um livro para o lixo, e pergunto-me se não haverá mais amontoados de palavras, presas dentro daqueles sacos azuis, inchados. É um pouco triste.

Felizmente, aquele livro em particular recusa-se a resvalar para o esquecimento; não quer morrer uma morte pouco digna por entre os detritos. O homem do lixo, trajado com roupas fluorescentes, folheia por breves segundos as suas páginas, o papel amarelo a deslizar por entre as luvas grossas de cabedal, e encaixa o sobrevivente numa das protuberâncias de metal do camião. Não sei qual o título na capa, nem o que terá ele lido que despertou a sua atenção, mas sei que foram palavras poderosas, palavras que não estavam destinadas a perder-se. Cada vez que disser, de hoje em diante, que não escolhemos os livros, eles é que nos escolhem a nós, vou recordar-me do livro condenado, que se salvou nos últimos instantes. O sobrevivente.

Aquele livro nasceu de um sonho que alguém um dia teve, e dedicou dias e noites a materializar em palavras o que até então era apenas traduzível em imagens, sons, e recordações; foi lido por alguém que decidiu que o conteúdo era bom o suficiente para levar outros a disponibilizarem-se a pagar uma determinada quantia, para conhecer os sonhos do autor; já esteve disposto nos escapatares de uma livraria, a cheirar a novo, com uma capa colorida, e atraiu a atenção dos passantes; foi lido, possivelmente relido, adorado ou odiado, e depois arquivado numa estante, ou num canto de uma secretária; talvez anos mais tarde tenha sido transferido para um sótão, onde acumulou pó durante anos e anos; pode ter sido herdado por algum energúmeno, que não se deu ao trabalho de ler o que continha, e decidiu matá-lo, atirá-lo para o limbo dos livros que já ninguém lê, nunca ninguém lerá. Aquele livro estava destinado a nunca mais ser lido, e compreendam que para um amante de livros, como sou, estas são palavras terríveis, com uma fatalidade de dimensões trágicas. Estou contente por ter sobrevivido, por ter encontrado o caminho de casa.

As palavras nunca morrem.

5 comentários:

Flávio disse...

Comungo da admiração pelos homens do lixo, que o filme O Fantasma, do João Pedro Rodrigues, captou tão bem. São, realmente, fantasmas: errantes, silenciosos, invisíveis para a maioria de nós.

Sandman disse...

Curioso... acho que não vejo um filme português há anos... exceptuando as pontuais comédias da época de ouro, claro.

Estou a ser preconceituoso e generalista, logicamente, mas a simples menção de um filme português desperta-me as urticárias cinéfilas, e manda-me arrepios de tédio pelo corpo abaixo...

A ideia que faço dos filmes portugueses (mal fundamentada, pois não os vejo) é que não são escapistas, progressistas, realistas, fantasistas, ou positivistas: são depressivistas.

A. disse...

Há uns tempos vi uma reportagem sobre o destino dos livros encontrados no lixo, que são guardados, restaurados (se precisarem) e entregues em bibliotecas públicas.

Sandman disse...

Ou adoptados, Luna, por lixeiros que amam a leitura.

Era o que eu faria, pelo menos, se fosse lixeiro. E ainda aproveitava para ler antes de chegar ao próximo contentor. :)

Patrícia disse...

Os verdadeiros amantes de livros entendem-te. :)