terça-feira, julho 11, 2006

Palavras caras


Estive este Domingo na Feira do Livro, no Parque Urbano de Ermesinde, por um feliz acaso. Este tipo de eventos é o meu Toys ’R’ Us dos dias adultos, mas não pelos descontos nos livros novos; esses passam-me ao lado, é mesmo pelos livros em segunda mão. Confesso que me perco quando começo a vaguear pelas mesas de livros amarelados, com capas adoravelmente kitsch, e um vago odor a mofo. Metamorfoseio-me em mulher fanática por compras, na época de saldos. Acredito, inclusive, que os instintos femininos assomem à superfície, pois recuso-me a comprar o que quer que seja antes de ter manuseado tudo o que há para ver (“comprava já isto, mas e se na próxima loja estiver algo que me agrade ainda mais?”)

Duas horas depois estava com um saco em cada mão, razoavelmente cheios, restos de gelado no lábio, e um ar satisfeito de quem acabou de adquirir:

~ Shōgun, James Clavell, Vol. I, Publicações Europa-América, 541 páginas.
~ Shōgun, James Clavell, Vol. II, Publicações Europa-América, 543 páginas.
~ Cara ou Coroa, Ellery Queen, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 256 páginas.
~ A Clínica do Terror, Mary Higgins Clark, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 272 páginas.
~ A Dama do Lago, Raymond Chandler, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 206 páginas.
~ A Sangue Frio, Truman Capote, Biblioteca Visão Mestres Policiais, 320 páginas.

Total: 6 livros, 2138 páginas, 10 euros (na verdade os dois primeiros foram oferecidos - obrigado amor -, mas o preço total está correcto).

À partida, não seria necessário escrever mais nada, uma vez que se a (o) cara (o) leitora (or) – é bom variar hábitos de escrita para o feminino, não acham? – tem paciência para me ler, não lhe serão alheios os preços mercenários da literatura, hoje em dia. Mas vamos penetrar só mais um pouquinho no âmago da questão (adicionei esta expressão fálica para os leitores não pensarem que beneficio apenas as mulheres).

O livro “A Sangue Frio”, de Truman Capote, está actualmente a ser comercializado a um custo de 17,96 € (dados obtidos na Fnac, Edições D. Quixote), e também aqui quaisquer óbvias conclusões tornam-se redundantes. É correcto afirmar que a edição na Fnac tem uma capa bonita, em alusão ao filme recentemente estreado, e fará melhor figura na estante lá de casa do que a edição de capa dura da Visão, que até diz “Colecção Lipton”, com o respectivo logótipo da bebida na contracapa. Mas isto é totalmente irrelevante para quem compra livros para ler (talvez esteja a aplicar o meu molde a todos os bons leitores, mas eu – sei bem – não compro livros para expor na prateleira. Não o faria, sequer, se tivesse uma prateleira).

Por outro lado, quem visita livrarias com alguma frequência, e vai para além das estantes frontais dos tops do momento, sabe decerto que o preço do livro de Truman Capote não estava tão inflacionado, antes da estreia do filme. Não há qualquer censura implícita nesta jogada da editora, afinal, tudo é negócio, e se se podem colocar livros tecnicamente off the immediate market a render mais umas moedas, quais prostitutas desdentadas momentaneamente elevadas à condição de novidade da semana, hey hey hey, more power to you, mighty publisher.

Mas não resisto a dar uma rapidinha na novidade da semana: só mesmo na mente de um bando de mentecaptos gananciosos que ouviram demasiadas teorias de marketing é que um livro com 40 anos de existência poderia ser trazido para a ribalta de preços de primeira edição, depois do relativo sucesso comercial de um filme baseado nesse livro de 40 anos, sendo que a punch line, nesta triste anedota, é que o filme deve a sua existência justamente ao sucesso do livro em questão. Confusa (o)? Já estou a ver os masterminds da editora a salivarem de antecipação perante as notícias da box office, os olhinhos cheios de cifrões, como os desenhos animados de há 40 anos, a imaginarem as dúzias de pacóvios que vão generosamente abrir as carteiras para pagar preços mais elevados por um livro, só porque alguém decidiu, um dia, adaptar a história ao cinema. E na maior parte das vezes nem se dão ao trabalho de disfarçar: é imprimir umas sobrecapas com as trombas do actor que faz o papel do personagem principal, embrulhar nas edições encalhadas em centenas de livrarias, e já está; saldos ao contrário, aproveite antes que façam a sequela. Outras vezes não é preciso encapotar o abuso; basta comparar os preços do Código da Vinci, que cheguei a encontrar a 13 ou 14 euros, depois de esgotada a euforia inicial, e agora já se alavancou a uns respeitáveis 16,16 €, com o lançamento do filme.

Os filmes baseados em livros incentivam a leitura das obras originais? Claro que sim. Os abutres também voam em círculos onde sentem carne fresca, mas isso não é motivo para tentar sacar mais alguns tostões das poucas pessoas cujos hábitos de lazer sustentam essas mesmas editoras. Queixam-se que actualmente se lê pouco? Da minha parte, considero que a invenção das sanitas de assento fez mais pela criação e incentivo de hábitos de leitura do que estas empresas que só sabem contar moedas.

E já sei o que fazer de agora em diante: estar bem atento às notícias sobre cinema, para decidir que livros comprar, antes que alguém decida prostituí-los.

1 comentário:

Patrícia disse...

Vénia ao entendido que procura os tesouros ao preço da chuva e não sofre da alergia que me impede de ler livros antigos a cheirar a mofo (nenhum anti-histamínico resolve)... Tenho o Henry Miller a dizer-me olá desde que nasci, mas nenhum dos volumes aceita ser violentado. Mal pego nele, fico num estado deplorável (espirros incessantes, lágrimas em catadupa) e incapaz de ler. O mesmo me diz o Ferreira de Castro e o Eça. Ou seja, se os volumes me entusiasmam, tenho de amealhar para os comprar novinhos e a cheirar a roubalheira. É muito triste ter de chegar à conclusão que o prazer de ler é um luxo... um luxo muito caro. Poderia, obviamente, ir à biblioteca. Mas, para além de ser menos prático e ficar limitada em termos de tempo (e de não ter um bom leque de obras na da terrinha), gosto imenso de guardar os livros que me tocam. São tesouros, sem dúvida. E já basta ficar sem muitos dos que emprestei.

Que maravilha ter um amor que te presenteia com as tais preciosidades! :) Também não tenho razões de queixa, é a prenda que mais frequentemente recebo. E ultimamente tenho sido muito mimada (aren't we lucky?)! :)

Espero que nunca te falte vontade de manter este blog. Gosto imenso de te ler.

Beijo