sexta-feira, agosto 18, 2006

Imbricações II


“Brevemente olharemos a paisagem de longe, brevemente seremos expulsos do paraíso. Nada de novo num mundo velho que se reconstrói a cada momento.”
Revisitação

Imbricações deriva da palavra latina imbricare, que significa “dispor como as telhas num telhado”. É assim a Lusce, quando assina os posts como Maria C.: dispõe pequenas pérolas de germinações de ideias, curtos momentos de reflexão que pairam à superfície, a adivinhar o mergulho em elaborações cognitivas de águas profundas. Sem ostentações, quase com distanciamento, em gestos de intimidade mais sentida que pronunciada.

“Ás vezes o amor chega sobreposto em camadas. Na camada mais profunda fica escondida a esperança longínqua, depois a meio o possível, à superfície o visível.”
Camadas e camadas...diz o Ogre

Nunca estive com a Lusce pessoalmente, mas já a conheço há algum tempo, desde os saudosos tempos do fórum Generalidades, no Sapo. Como qualquer mulher que se preze, também ela é feita de muitos nomes, enigmaticamente imbricados ao observador atento: Kriptonita, Stela Polaris, Lusce, Lac Lunair. Reparo que em todos estes nicks há uma sugestão – não observável mas pulsante como a sua escrita – de luz, claridade, exposição, luminosidade. Nunca intrusiva, mais como o raiar bisonho que se insinua pelas frestas da cortina, de manhã, a sugerir o dia temperado.

“O amor faz-se de memórias também. O sorriso, o colo, a carícia. Os tempos corriam doces e o futuro era no presente um colar de pérolas. Depois a distancia cruzou o céu e ficaram somente os dias de gelo, o frio da neve, o vento húmido do oceano. Restam-nos os dias de sol que nos aquecem a ponta do nariz em dias despidos de nuvens.”
Olhares 60

Eram assim os seus posts, nos fóruns: nunca arrogantes na imposição, mas insinuantes no convite à reflexão. Disse-lhe uma vez que ela me despertava para aquilo que baptizei de “pensamentos de segundo grau”, que são todas as reminiscências que nos ocorrem mas nem sempre nos apercebemos delas. E é assim a Lusce, e são assim os seus posts, no blog: servem como introdução a pensamentos mais alongados, não se encerram em ideias acabadas e plenamente desenvolvidas. São descrições breves, erupções de sonhos que aguardam pacientemente na fímbria do consciente, à espera da manifestação, na busca de interlocutores. Agora, digo-lhe que ela tem vocação de musa profissional. E tem, mas também escreve muito bem.

“O desassossego e o tempo que teima em ficar. O tempo que me prende ao presente. O tempo que não prevê futuro. O tempo que me puxa para o passado. A flor. O nome. O colar. Campos repletos de amarelos na paisagem silvestre. O sol e a primavera. Matizados de cores. Onde será o tempo futuro?”
Olhares 55

Se alguma coisa haverá a dizer da Internet, será que nos permite tocar á distância aqueles em que nos reconhecemos. Como manifestações da mesma pessoa, com outras vivências, formas, vozes. É uma ilusão, claro, mas ainda assim uma agradável mentira. Falar com a Lusce deixa-me a pensar em todas as pessoas que conheci através deste meio, e de uma forma tão íntima e simultaneamente resguardada de identificações, que quase encontro ecos de mim nelas. Como se fosse essas pessoas, mas noutro contexto, diferentes dimensões.

E depois imagino que estamos todos na fila do cinema, isolados como estranhos que mantém paredes invisíveis a precaver o íntimo, cada um de nós a ver as costas da pessoa à frente, a pensar sem pensar, a olhar sem olhar. Conhecemo-nos todos, mas nem sonhamos quem somos. E continuamos isolados, como estranhos que se tocam no escuro. Sem sonhar que é a nós todos que estamos a tocar.

“Eu sei que te faço sonhar nos dias em que as estrelas empalidecem e o mundo se apresenta frio, gelado, sem luz.

Como dizer-te toda a ternura que me inspiras?
Falo para o vento, sabes?
Mergulho por dentro, inspiro, relaxo, e depois deixo exalar o ar de vagar. De vagar. Vês? É apenas respiração. In out, in out, in out. Lentamente.”

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