Se a necessidade aguça o engenho, será que os nossos antepassados nas cavernas estavam mais capacitados que os seres humanos modernos, para lidarem com as contrariedades e precariedades da vida? Seriam mais resolutamente astutos, e dotados de habilidade instintiva, para ultrapassarem as limitações naturais que se nos impõem?
Actualmente todos os computadores possuem uma capacidade explosiva de processamento gráfico e computação matemática. Com tanto poder, não seria de espantar que insidiosamente se tivessem imiscuído em todas as áreas do conhecimento e manipulação humanas. Falta-lhes apenas alma, e é essa a grande barreira que ainda terão que transpor, antes de o processo de absorção da humanidade se completar. Não sabem amar, apenas simular o amor. Não sentem prazer, mas já começam a dar os primeiros passos na disposição do prazer, na imitação da sensualidade. Que será de nós, máquinas obsoletas que ainda se sobrepõem a tais impulsos eléctricos, quando formos inferiorizados pelo amor de uma máquina? Simular amor é exprimir amor?
Afasto-me do assunto. A necessidade aguça o engenho, portanto. No início da década de noventa do século passado surgiram as primeiras aventuras gráficas, maioritariamente pelas mãos da Lucas Arts. Foi um processo lógico de evolução que teve como ponto de partida as aventuras de texto que surgiram inicialmente, e que por sua vez também foram um desenvolvimento do conceito nascido nos livros de escolha múltipla, e nos jogos de RPG. O objectivo último, como em todos os jogos, era o de imiscuir o jogador num mundo que lhe é totalmente estranho, suportado por regras claramente definidas, onde poderia vivenciar experiências que de outra forma jamais seriam experimentadas. Entreter e submergir, pois então, na forma de acções e reacções cuidadosamente encadeadas por forma a alcançar um propósito maior.
Nas aventuras gráficas, esse prazer era levado ao limite, porque, sejamos honestos, falta aventura nas nossas vidas. Não vamos para o trabalho e somos raptados por extraterrestres, que querem destruir o planeta, cabendo a nós a grandiosa tarefa de salvamento da humanidade. Não descobrimos um portal inter dimensional no guarda-fatos quando vamos mudar de roupa. Não somos piratas, faxineiros espaciais, caçadores de vampiros, exploradores arqueológicos, agentes de viagem para a terra dos mortos, pilotos contrabandistas, ou seres absolutamente comuns em circunstâncias extraordinárias. Na falta de emoções e acontecimentos incomuns, fazemos o possível para os simular, e as aventuras gráficas representavam um escape ideal para uma vida cinzenta fora dos quatro cantos do monitor.
Existia no entanto um problema que limitava de certa forma o processo de transformação: os gráficos. Não existiam placas 3d, as resoluções não eram nada por aí além, e o máximo que se conseguia (e já estamos a falar de um estágio superior dos jogos) era uns fundos pintados à mão e posteriormente digitalizados, com resoluções adaptadas ao poder de processamento. Mas tudo sempre demasiado pixelizado, com muitos quadradinhos no ecrã. Sendo então que a necessidade aguça o engenho, e face a estas limitações, era preciso encontrar outras formas de levar o jogador a acreditar que realmente estava naquele mundo, a perder-se no jogo e metamorfosear-se em heróis improváveis: através de uma boa história.
Muitas pessoas da minha idade sofrem de acessos de nostalgia quando se recordam das directas passadas a jogar estes jogos. Da frustração de se encontrarem num beco sem saída, e experimentarem todos os objectos, todas as combinações, falarem com todos os personagens. E do exaltamento quando se conseguia descobrir o enguiço, e se avançava mais um pouco. Era um misto de glória e excitação descobrir que aquele personagem ia fornecer uma pista importante que permitiria o acesso a um local novo, com novos puzzles e novos personagens.
Actualmente, as aventuras gráficas perderam o lugar neste mundo do entretenimento onde predominam os simuladores de desporto e condução, e os first person shooters. Que não precisam de uma boa história (na verdade precisam, ou pelo menos beneficiam bastante, como Half Life 2 demonstrou peremptoriamente), pois que toda a submersão no jogo assenta primordialmente no aspecto visual. Espetem-lhes com suficientes efeitos especiais, shaders, formas orgânicas, movimentos fluidos, espaços de cortar o fôlego, e ninguém vai reparar na falta de substância. É um pouco como os filmes: os CGI (computer generated images) representam sem dúvida um grande avanço, e não podemos negar a sua espectacularidade, mas também é verdade que introduzem um elemento de preguiça na indústria. Aquilo que verdadeiramente cativa as audiências é uma boa história, mas há por aí muitos filmezecos que pensam que o que realmente é preciso são sequências de acção cada vez mais grandiosas, monstros cada vez mais realistas, cenas de destruição cada vez mais bíblicas. Milhões gastos em monumentais flops de bilheteira, na verdade flops da consciência crítica das massas. Não são simulações do amor, são antes prostituições baratas.
Com os jogos passa-se o mesmo. As aventuras gráficas morreram porque pouca gente se preocupa em investir numa história de qualidade, com diálogos credíveis ou ridículos, personagens caricatos ou realistas. Não vale a pena o esforço, financeiramente (ou valerá?). Os últimos esforços no sentido de dar um último fôlego a este género foram sem dúvida fantásticos (Syberia, Grim Fandango, Monkey Island IV), e merecem todo o carinho do mundo porque finalmente vemos uma história que nos agarra desde o princípio servida por gráficos belíssimos; afinal, aquilo que faltava às primeiras aventuras gráficas, que já conseguiam agarrar os jogadores apenas com base na história. Claro que também encontramos outras excepções em outros géneros (ver Warcraft III), nas prateleiras de hoje; mas continuam a ser excepções, nunca a regra.
O abandonware permite-nos voltar a esses saudosos tempos, e, uma vez ultrapassada a estranheza perante imagens tão pixelizadas, lá voltamos nós a ser adolescentes com garrafas de coca cola ao lado do computador, a varar noites de pesquisas e descobertas, sem pensar nos compromissos de amanhã. Depois de cinco minutos nem sequer nos lembramos dos milhões de polígonos debitados pelo jogo X, com texturas hiper realistas e mapas com formas curvas. Vivemos vidas comuns, é certo, e o máximo que podemos pretender é simular que existimos no centro de acontecimentos extraordinários em mundos oníricos, mas que fantásticos sonhos são estes, que nos mentem e convencem com tantas impossibilidades?
Sonhos, sim. É como sonhar. Consigo ser outras pessoas, ser um indivíduo normal em intrigas anormais. Descubro, invento, alcanço, elaboro, converso, e até me apaixono. É uma simulação de amor, claro: não será exactamente o sentimento, mas as palpitações estão muito bem sincronizadas. E que poderei esperar mais, eu que já vivo o amor longe do computador, senão sonhar amor em impulsos eléctricos que sonham ter alma?
(Assunto não esgotado, aguardem novos posts e, antes de tudo o que eventualmente façam, tenham uma boa noite, e bons sonhos)
Actualmente todos os computadores possuem uma capacidade explosiva de processamento gráfico e computação matemática. Com tanto poder, não seria de espantar que insidiosamente se tivessem imiscuído em todas as áreas do conhecimento e manipulação humanas. Falta-lhes apenas alma, e é essa a grande barreira que ainda terão que transpor, antes de o processo de absorção da humanidade se completar. Não sabem amar, apenas simular o amor. Não sentem prazer, mas já começam a dar os primeiros passos na disposição do prazer, na imitação da sensualidade. Que será de nós, máquinas obsoletas que ainda se sobrepõem a tais impulsos eléctricos, quando formos inferiorizados pelo amor de uma máquina? Simular amor é exprimir amor?
Afasto-me do assunto. A necessidade aguça o engenho, portanto. No início da década de noventa do século passado surgiram as primeiras aventuras gráficas, maioritariamente pelas mãos da Lucas Arts. Foi um processo lógico de evolução que teve como ponto de partida as aventuras de texto que surgiram inicialmente, e que por sua vez também foram um desenvolvimento do conceito nascido nos livros de escolha múltipla, e nos jogos de RPG. O objectivo último, como em todos os jogos, era o de imiscuir o jogador num mundo que lhe é totalmente estranho, suportado por regras claramente definidas, onde poderia vivenciar experiências que de outra forma jamais seriam experimentadas. Entreter e submergir, pois então, na forma de acções e reacções cuidadosamente encadeadas por forma a alcançar um propósito maior.
Nas aventuras gráficas, esse prazer era levado ao limite, porque, sejamos honestos, falta aventura nas nossas vidas. Não vamos para o trabalho e somos raptados por extraterrestres, que querem destruir o planeta, cabendo a nós a grandiosa tarefa de salvamento da humanidade. Não descobrimos um portal inter dimensional no guarda-fatos quando vamos mudar de roupa. Não somos piratas, faxineiros espaciais, caçadores de vampiros, exploradores arqueológicos, agentes de viagem para a terra dos mortos, pilotos contrabandistas, ou seres absolutamente comuns em circunstâncias extraordinárias. Na falta de emoções e acontecimentos incomuns, fazemos o possível para os simular, e as aventuras gráficas representavam um escape ideal para uma vida cinzenta fora dos quatro cantos do monitor.
Existia no entanto um problema que limitava de certa forma o processo de transformação: os gráficos. Não existiam placas 3d, as resoluções não eram nada por aí além, e o máximo que se conseguia (e já estamos a falar de um estágio superior dos jogos) era uns fundos pintados à mão e posteriormente digitalizados, com resoluções adaptadas ao poder de processamento. Mas tudo sempre demasiado pixelizado, com muitos quadradinhos no ecrã. Sendo então que a necessidade aguça o engenho, e face a estas limitações, era preciso encontrar outras formas de levar o jogador a acreditar que realmente estava naquele mundo, a perder-se no jogo e metamorfosear-se em heróis improváveis: através de uma boa história.
Muitas pessoas da minha idade sofrem de acessos de nostalgia quando se recordam das directas passadas a jogar estes jogos. Da frustração de se encontrarem num beco sem saída, e experimentarem todos os objectos, todas as combinações, falarem com todos os personagens. E do exaltamento quando se conseguia descobrir o enguiço, e se avançava mais um pouco. Era um misto de glória e excitação descobrir que aquele personagem ia fornecer uma pista importante que permitiria o acesso a um local novo, com novos puzzles e novos personagens.
Actualmente, as aventuras gráficas perderam o lugar neste mundo do entretenimento onde predominam os simuladores de desporto e condução, e os first person shooters. Que não precisam de uma boa história (na verdade precisam, ou pelo menos beneficiam bastante, como Half Life 2 demonstrou peremptoriamente), pois que toda a submersão no jogo assenta primordialmente no aspecto visual. Espetem-lhes com suficientes efeitos especiais, shaders, formas orgânicas, movimentos fluidos, espaços de cortar o fôlego, e ninguém vai reparar na falta de substância. É um pouco como os filmes: os CGI (computer generated images) representam sem dúvida um grande avanço, e não podemos negar a sua espectacularidade, mas também é verdade que introduzem um elemento de preguiça na indústria. Aquilo que verdadeiramente cativa as audiências é uma boa história, mas há por aí muitos filmezecos que pensam que o que realmente é preciso são sequências de acção cada vez mais grandiosas, monstros cada vez mais realistas, cenas de destruição cada vez mais bíblicas. Milhões gastos em monumentais flops de bilheteira, na verdade flops da consciência crítica das massas. Não são simulações do amor, são antes prostituições baratas.
Com os jogos passa-se o mesmo. As aventuras gráficas morreram porque pouca gente se preocupa em investir numa história de qualidade, com diálogos credíveis ou ridículos, personagens caricatos ou realistas. Não vale a pena o esforço, financeiramente (ou valerá?). Os últimos esforços no sentido de dar um último fôlego a este género foram sem dúvida fantásticos (Syberia, Grim Fandango, Monkey Island IV), e merecem todo o carinho do mundo porque finalmente vemos uma história que nos agarra desde o princípio servida por gráficos belíssimos; afinal, aquilo que faltava às primeiras aventuras gráficas, que já conseguiam agarrar os jogadores apenas com base na história. Claro que também encontramos outras excepções em outros géneros (ver Warcraft III), nas prateleiras de hoje; mas continuam a ser excepções, nunca a regra.
O abandonware permite-nos voltar a esses saudosos tempos, e, uma vez ultrapassada a estranheza perante imagens tão pixelizadas, lá voltamos nós a ser adolescentes com garrafas de coca cola ao lado do computador, a varar noites de pesquisas e descobertas, sem pensar nos compromissos de amanhã. Depois de cinco minutos nem sequer nos lembramos dos milhões de polígonos debitados pelo jogo X, com texturas hiper realistas e mapas com formas curvas. Vivemos vidas comuns, é certo, e o máximo que podemos pretender é simular que existimos no centro de acontecimentos extraordinários em mundos oníricos, mas que fantásticos sonhos são estes, que nos mentem e convencem com tantas impossibilidades?
Sonhos, sim. É como sonhar. Consigo ser outras pessoas, ser um indivíduo normal em intrigas anormais. Descubro, invento, alcanço, elaboro, converso, e até me apaixono. É uma simulação de amor, claro: não será exactamente o sentimento, mas as palpitações estão muito bem sincronizadas. E que poderei esperar mais, eu que já vivo o amor longe do computador, senão sonhar amor em impulsos eléctricos que sonham ter alma?
(Assunto não esgotado, aguardem novos posts e, antes de tudo o que eventualmente façam, tenham uma boa noite, e bons sonhos)
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