quinta-feira, novembro 09, 2006

Ramadão II (por Neil Gaiman)


‘Pois aqueles eram os dias das maravilhas, e Haroun Al Raschid era um rei sapiente. Quando se sentava em julgamento, até os sábios ficavam atónitos com a sagacidade dos seus veredictos, e sob o seu reinado a cidade prosperou, e toda a Arábia floresceu e tornou-se forte.

Mas Haroun Al Raschid tinha inquietações na sua alma.

E nessas alturas, quando a escuridão descia sobre a sua fronte, ele saía por uma noite para a cidade de Bagdad, levando consigo apenas o seu amigo Vizir Jafar, e Masrur, o seu executor. Vestidos como mercadores de uma terra distante, eles percorriam a cidade, a experimentarem os seus prazeres e saborearem as suas bebidas, a enobrecerem os virtuosos e os artistas, e a repudiarem os malévolos e os preguiçosos.

Desta forma encontraram histórias mais estranhas do que as que alguém pudesse contar até aquela altura, mesmo no mercado de Bagdad. Foi nessa altura que Haroun Al Raschid elevou um miserável pedinte ao Califado, por um dia de sonho, e também quando o Grande Rei testemunhou a morte de um corcunda e admirou-se dos sete estranhos que confessaram o seu assassínio, ainda que o pobre tolo se tivesse engasgado com uma espinha de peixe. E aconteceu em Bagdad, cidade das cidades, cidade acima das cidades, que o Rei e o seu Vizir testemunharam o único voo do cavalo alado, todo feito de vidro excepto pelos olhos, que eram de osso.

Mas ainda assim o Rei permanecia inquieto.

Um dia, conforme Allah decidiu que haveria de ser, o Defensor da Fé estava num balcão muito acima da cidade, ao meio do dia, e foi-lhe permitido ver toda a cidade espalhada abaixo de si, como uma tapeçaria. Ele viu tapetes a vibrarem pelos céus, mercados a abarrotar de doçarias e especiarias raras, e pássaros habilmente feitos de jóias que cantavam mais docemente que qualquer ave nascida de um ovo.

Ele viu caravanas a atravessar o deserto, rumo à cidade, camelos carregados com sedas, perfumes caros, diamantes e rubis grandes como o punho de um homem, e jovens dançarinas de olhos pintados, a suas faces veladas e os pés tatuados com hena. Viu embarcações a entrarem no porto, cheias de cereais e romãs, e os banhos públicos e as espirais das mesquitas, e ouviu os Muezzin a chamarem os fiéis às orações. E viu os artesãos e marinheiros e mercadores; os guerreiros e os guardas da cidade, e estranhos de todas as nações, que haviam vindo para Bagdad, a jóia das cidades. Incomparável.

Tudo isto ele viu, mas o seu coração estava inquieto. Era o Ramadão, o mais sagrado dos meses, pois foi no Ramadão que o anjo Gabriel primeiro deu a palavra de Allah, o Único, o único Deus, ao Profeta.

A sua esposa, Zubaidah, veio à sua presença.’
continua...

8 comentários:

marta, a menina do blog disse...

Uma história que acho muito interessante, que tem muito por explorar e na qual estou a trabalhar é a "Lenda das Amendoeiras" - mistura o Norte gelado com o quente Sul. Mistura explosiva. Penso começar a publicar em breve num dos blogs - o 3º... O das linhas desorientadas não tem muito a ver...

marta, a menina do blog disse...

Consegue usar os adjectivos para tornar o texto descritivo mas sem ser enfadonho, e consegue ser bastante figurativo.
É uma festa para a imaginação!!
Estou a adorar a história. Mal posso esperar pelo próximo capítulo...

Sandman disse...

:)

A escrita de Neil Gaiman é fantástica, se tiveres oportunidade de ir a uma fnac começa a encomendar os volumes desde o I, que vale mesmo a pena. São caritos, mas compensam bem. Aliás, acho que até agora ainda não encontrei nada escrito por esse senhor que não fosse extraordinário (já há vários livros em português), excepto, talvez, a biografia dos Duran Duran, que ele escreveu em início de carreira e que agora é uma espécie de raridade... (embora não tenha lido)

Ontem não pude publicar a parte III porque cheguei tardíssimo a casa, mas hoje não falha. E vê lá se publicas a "Lenda da Amendoeira" depressa, já me aguçaste a curiosidade.

PS - Também tenho umas histórias na calha para publicar aqui. Haja tempo para terminá-las, uf... :P

Sandman disse...

Já agora, ou é de mim ou o teu blog parece estar com um pequeno problema de descoordenação. O blog da Patrícia (Inside the Fire) já sofreu disso e que consegui ajudá-la a resolver o problema, mas confesso que já não me recordo do que sugeri... fala com ela.

marta, a menina do blog disse...

Isto ficou assim desde que fui ao You Tube buscar aqueles vídeos dos Heroes del Silencio... Espero que passe quando eles sairem da página - deve ser uma questão de tempo.
Se isso não acontecer, vou ter de começar a preocupar-me...

Patrícia disse...

A Patrícia está aqui para ajudar o próximo! ;D ;D ;D

Na verdade, foste tu quem operou todo o milagre de cura do blog desenfreado, Sandman. Descobriste a partir de que post aquilo tinha começado a descarrilar e bastou-me ir ao tal post e mexer nele, para tudo ficar normal.

You're the wizzard. :)

Patrícia disse...

I meant wizard :D

Sandman disse...

:D

E, considerando o post que colocaste há dias sobre a lei tríplice, tu és a sorcerer :)