quarta-feira, novembro 22, 2006

Ramadão VII (por Neil Gaiman)


O rei bateu novamente palmas, e ordenou aos servos que imediatamente acorreram de cabeças baixas e mãos erguidas:

‘Nos meus aposentos encontra-se uma arca que pertencia ao meu pai, e ao seu pai antes dele. Tragam-na até mim. ‘

Os serviçais desapareceram por instantes, e voltaram trazendo uma caixa de madeira de sândalo, gravada com estranhos desenhos em marfim e madrepérola, que colocaram aos pés do rei. Ele abriu a caixa com as suas próprias mãos, e retirou um pequeno tapete de aparência puída e pouco notável, que estendeu no chão. Depois, o rei subiu para o tapete cuidadosamente, quase com reverência, ainda que não fosse um tapete de oração, e indicou ao senhor dos sonhos que ocupasse o espaço vazio, ao seu lado.

Haroun Al Raschid disse uma palavra três vezes, e à terceira repetição o tapete ergueu-se no ar, devagar e em silêncio, a brilhar levemente. Começaram a descer suavemente, por entre as cúpulas douradas e minaretes cor de jade, o rei de Bagdad acocorado à frente, como vulgar pastor de cabras do deserto, e o seu pálido companheiro sentado nas bordas do tapete, atrás dele, os pés a balançarem no vazio.

‘Olhe para a minha cidade, Lorde dos Sonhos. ‘ – disse o rei, enquanto se deitava sobre o tecido gasto, de olhos postos no chão que se aproximava lentamente.

Estou a vê-la.’ – respondeu o passageiro.

‘É uma cidade de maravilhas, de espantos. Estes são os dias das maravilhas. Esta é a minha cidade. Sou responsável por ela. ‘ – abaixo deles surgiu uma enorme praça coberta de tendas e de multidão atarefada, com uma bela fonte ao centro, rodeada por um pequeno lago artificial. – ‘Ah! O soukh. Desce, ó tapete. Vamos tratar de negócios no mercado. ‘

O tapete depositou os viajantes no centro da praça, ao lado da enorme fonte. À sua volta redemoinhava um turbilhão de pessoas que circulavam devagar, parando ocasionalmente para observar os artigos expostos nas tendas coloridas. Viam-se vendedores de fruta que regateavam teimosamente com os seus clientes enquanto crianças de turbante aproveitavam a distracção dos adultos para roubarem umas peças de fruta, e ferreiros a afiarem espadas, por entre uma infinidade de lâminas penduradas em traves de bambu. A um canto uma dama de pele escura e rosto escondido por um véu segurava uma frágil corrente que prendia pelo pescoço um gorila de aspecto feroz, e noutra tenda grasnavam aves exóticas de penas multicolores. O rei apeou-se do tapete e ordenou, com as mãos na cintura e o rosto respeitosamente a fitar o chão:

‘Agora, espera alto acima do soukh, meu tapete. Chamar-te-ei se tiver necessidade de ti. ‘ – ao que o tapete prontamente obedeceu, levantando voo até se tornar uma pequena mancha, por entre o azul do céu.
continua...

5 comentários:

Anónimo disse...

Continuo a ler :)

Sandman disse...

:)

Anónimo disse...

Bem vês: Harun Al-Rachid é um califa recorrente nas histórias das mil e uma noites ( li todas essas histórias) mas a presença do Sandman é o elemento Novo. É um cruzamento interessante.

Anónimo disse...

Bem, imagino que deves ter tido uma trabalheira para conseguir traduzir e postar esta historia mas valeu a pena! É espectacular!

As imagens? essas fazem-nos viajar, são lindissimasssss!!
Os meus parabens! :)

Sandman disse...

Lusce, ainda vai ficar mais interessante, com a passagem que vou postar agora (e já estamos a aproximar-mo-nos do fim da história). Neil Gaiman adora integrar estes elementos, reais ou imaginários, até mesmo mitologicos, nas suas histórias (digamos que são um paraíso para aqueles que gostam de detectar referências obscuras).

Mina, ainda bem que gostas, porque realmente deu bastante trabalho. A escrita de Gaiman é muito rebuscada, poética, o que dificulta ainda mais a tradução. A história ainda não terminou, e agora estamos a chegar ao ponto fulcral... continua a acompanhar! :)