sábado, agosto 19, 2006

Leituras VIII



"Ela senta-se no canto, tentando extrair um pouco de ar numa divisão onde há poucos minutos parecia haver muito, mas agora parece não haver nenhum. Do que lhe parece uma distância enorme consegue ouvir um débil uup-uup e sabe que é o ar a descer-lhe pela garganta, saindo depois outra vez numa série de pequenos arquejos febris, mas isso não altera a sensação de que se está a afogar, ali, no canto da sala de estar, olhando para os destroços rasgados do romance de bolso que estava a ler quando o marido chegou a casa.
Não que isso lhe interesse muito. A dor é demasiado grande para que se preocupe com tais questões insignificantes como a respiração ou o facto de parecer não existir ar nenhum no ar que respira. A dor engoliu-a como, alegadamente, a baleia terá engolido Jonas, aquele que na Bíblia quis fugir ao recrutamento. Pulsa como um sol venenoso cintilando nas profundezas do seu ventre, onde até esta noite havia apenas a tranquila sensação de algo novo a crescer.
Nunca sentira uma dor como esta, pelo menos que se lembrasse - nem mesmo quando, com treze anos, ao dar uma guinada na bicicleta para se desviar de um buraco foi projectada, indo bater com a cabeça no asfalto, ficando com um golpe que levou onze pontos. O que recordava desse incidente era uma espécie de dor perfurante seguida por uma escuridão surpreendentemente estrelada que fora, na verdade, um breve desmaio... mas essa dor em nada se comparava com esta agonia. Esta horrível agonia. A mão que tem pousada na barriga sente uma carne que já não se parece de todo com carne; é como se tivesse sido aberta, como um fecho de correr, e o seu bébé com vida substituído por uma pedra escaldante.
Oh, meu Deus, por favor, pensa. Faz com que o bébé esteja bem.
Mas agora, quando finalmente a respiração começa a normalizar um pouco, dá-se conta de que o bébé não está bem, que ele também disso se encarregara. Quando se está grávida de quatro meses, o bébé ainda faz mais parte de nós do que de si mesmo, e quando se está sentada num canto com o cabelo colado em farripas às faces cobertas de suor e a sensação de que se engoliu uma pedra quente...
Algo lhe está a deixar pequenos beijos sinistros, viscosos, na parte de dentro das coxas."

6 comentários:

Ricardo Lopes Moura disse...

Olá.

Li esse livro ha mais de 10 anos, numa edição de bolso americana. Gostei bastante, como gosto sempre do Stephen King a descrever-nos o dia a dia de pessoas normais (aqui o novo começar de vida da protagonista, quarto novo e emprego de leitora de livros para cassete, negócio muito lucrativo nos EUA), e também que houvesse um outro mundo por trás da pintura, mas a forma como ele relaciona os dois mundos já é um bocado visto e pouco credível. Também o marido violento rapidamente cai no cliché dos seus livros anteriores. Ainda assim, na fase requentada da sua obra, é dos melhores que escreveu, a par de Insomnia e do ultrafabuloso Black House, escrito a meias com Peter Straub, com quem já escrevera O Talismã. O Dreamcatcher é um péssimo livro e um filme intragável.

Mas claro que o melhor de Stephen King é Christine - Unbefuckinglievable masterpiece - e Pet Sematary. Ao pé destes, tudo o resto fica abaixo.

Li mais de uma vintena de livros dele, mas desisti a meio dos anos 90, pq a qualidade decresceu muito e o dinheiro ainda custa a dar.

Espero que gostes deste texto que está no link. Fui eu que escrevi, está publicado e encontro-lhe reminiscências ao excerto que tu postaste.
http://anjo-de-rapina.livejournal.com/67094.html?mode=reply

Sandman disse...

Realmente o livro afunda-se um pouco na segunda parte, quando SK resolve introduzir o elemento de fantasia do labirinto e do minotauro, mas, ainda assim, um Stephen King mediano bate muitos escritores por aí, no auge da glória e talento. O homem é um mestre a contar histórias. O marido violento é um cliché, claro, um clone do personagem mau de "A metade sombria" e de praticamente todos os vilões dos seus livros, mas está muito bem retratado, e confesso que teria medo de conhecer alguém assim.

"Blackhouse" não li, possivelmente por não existir em português. Só recentemente comecei a ler livros em inglês (porquê tão tarde, não sei), e já li o primeiro volume de "The Dark Tower", o "Gunslinger", que me foi gentilmente ofertado. "O Talismã" achei fabuloso, o "Dreamcatcher" péssimo. "Christine" li há anos, em edição brasileira, e adorei. Infelizmente emprestei o livro a alguém e perdi-lhe o rastro. "Pet Sematary" teve o mesmo destino.

Mas para mim, o melhor livro de Stephen King que li foi "The Shinning"; posso mesmo dizer que foi a unica história que me provocou uma sensação palpável de medo. Um amigo que estava a ler o livro também sentiu a mesma coisa. Fabuloso, é pena que não exista uma versão como deve ser, em apenas um volume. Tudo o que vi foi em livro de bolso em 2 volumes da Europa América, e o livro merecia melhor.

Se não leste "A Zona Morta", aproveita, porque é SK nos seus primórdios, no seu melhor. Mais recentemente, "O Jogo de Gerald" também tem as suas qualidades, embora te afiance que nunca mais vou ler esse livro na vida, apesar de ter gostado; tem lá uma cena, perto do final, que me provocou arrepios, brrrr. "Tommyknockers" também é bastante bom (a passagem que descreve a noite de bebedeira de um personagem é épica, acredita), e claro, as colectâneas de contos.

Ainda não li o teu texto por falta de tempo, mas prometo que hoje à noite lhe vou dedicar toda a minha atenção.

Patrícia disse...

Ainda só li o Misery, o Homem do Colorado e o Estações Diferentes, mas tenho o Retrato e o Tommyknockers à espera na estante. Sou uma novata no mundo do Stephen King, mas estou a adorar. :)

Eu sei, eu sei... ninguém me perguntou nada... ;D

Beijo

Sandman disse...

Patricia, nem é preciso perguntar nada, fala e serás ouvida (ena, esta frase saiu um pouco bíblica!)

O Tommyknockers é bom, não será do melhor de King, mas ainda assim muito bom. Como disse, a cena que retrata uma noite de bebedeira de um personagem é algo verdadeirmente épico, quase dá a sensação que SK escreveu isso primeiro e só depois o resto do livro. É quase uma descida aos infernos, de vergonha em vergonha....

Recomendo que inicies com "O Retrato de Rose Madder", eu achei muito mais agradável. E também tem uma cena épica, quase no final do livro, quando uma mulher anda à porrada com o vilão. Quando leres vais perceber o que quero dizer :) (quase gritei "yes!" quando li essa passagem, hehe).


É pena que seja tão dificil de enontrar "O Iluminado" nas livrarias. É um dos melhores livros que já li, e sem dúvida o melhor, na minha opinião, de SK (se bem que o "Zona Morta" também é fantástico).

Depois diz-nos o que achaste.

Beijos

Ricardo Lopes Moura disse...

N deves ter percebido qd disse q li mais de uma vintena de SKs. Por isso, ja li todos os q referiste.

Tb li o Shining da Europa América e achei a traducao boa. O livro é excelente e mt melhor do q o filme. E funciona melhor a marreta de "crickett" (livro) do que o machado (filme), e ele perder-se pelos corredores em vez de na neve. E matar-se à frente do filho foi um choque.

A ZonA Morta tem de ser realmente imaginada nos anos 50, tempos de JFK. E no cinema o Christopher Walken tava fabuloso. Nos states houve uma série baseada no livro, com o herói a ter visoes e a investigar.

O Tommyknockers é muito bom,pq é um livro enorme e mantem sempre o interesse. Agora ele no fim pilotar a nave espacial...

O It gostei bastante, e acho que o Dreamcatcher vai lá buscar mt coisa.

O Talismã é bom, mas o SK é fraco em fantasia cor de rosa. O Peter Straub é mt melhor nisso, mas prefiro os dois sozinhos. Por outro lado, a dupla fez o Blackhouse, que é uma obra prima. Mais um calhamaço que não se consegue pôr de lado. Tem tudo o que é o melhor SK: terror, adolescência, dia-a-dia, mística e montes de suspense.
O Jogo de Gerald é interessante e curto. Gostei dos traumas da mulher algemada, mas preferia que a figura que ela via fosse realmente imaginação dela e não um maluco.

A Dolores Claiborne, da mesma altura, também é mt bom, e mil vezes superior ao filme.

Leste o meu comment no "V de Vingaça"? Continuei a conversa sobre o Alan Moore e juntei mais dados.

Sandman disse...

Como disseste que abandonaste a leitura de SK a meio dos anos 90, julguei que não tivesses chegado a ler algum da lista que referi... bem, pelo menos já leste todos os que saíram em português. Houve alguns que eu só li em tradução brasileira, e agora é que vou começar a atacar os restantes que ainda não foram traduzidos. Estou particularmente interessado no que referiste, o Blackhouse, pois gostei bastante do Talismã.

Já li também o teu conto. Está bastante descritivo, mas o final é um pouco surpreendente, talvez não muito lógico, se considerarmos a reacção do homem quando vê o boletim. :) Poderias ter, por exemlo, fornecido uma descrição mais alongada da mulher (para que a conheçamos melhor, e possamos sentir receio por ela perante a reação do marido - identificarmo-nos com a personagem), e dado um background subtil de um marido violento. Algo mesmo muito ao de leve, para que a surpresa da reacção fosse maior, e, ultimamente, a reacção do homem na casa de banho. De resto nota-se ali um embrião de uma boa ideia, que se calhar deverias aperfeiçoar.

Desculpa, mas tenho andado afastado destas lides estes dias, é o cansaço de quem chega a casa e só quer ler um pouco e adormecer. Vou lá agora ver o que escreves sobre o V, mesmo porque já andei também a trocar informações no blog do Markl.