Terá sido por volta do ano de 1984, 1985, numa era em que só existiam dois canais de televisão, a emissão real começava às seis da tarde (antes disso era a seca da tele-escola), a televisão por cabo era uma miragem, e só passava uma novela, brasileira, por dia. Estava sentado na cozinha, que também era a sala da casa da minha avó (para onde tínhamos ido morar recentemente), e começou o filme do Super-homem, numa estreia inédita na televisão. Lembro-me primeiro do espanto de um filme tão fantasticamente maravilhoso estar a passar na RTP 1, algo fora do normal para o que se exibia na época, e depois da sensação de surpresa, do inesperado. Como quando recebemos um presente com o qual não estamos a contar.
(Também senti o mesmo quando estava a sair do ciclo e vi o início do King Kong (aquele que inspirou Peter Jackson) pela janela de uma casa. Mas isso é outra história.)
Infelizmente, a televisão lá de casa era uma arcaica Phillips a preto e branco (a chamada televisão de guerra, feita para durar), e não podia ser, não, um filme deste calibre tinha que ser desfrutado a cores em ecrã gigante. Julgo que demorei cerca de 10 segundos a chegar ao café principal da vila, o Coelho (tinha outro nome mas, como tantos estabelecimentos de vila do interior, era conhecido pelo apelido do dono), um lugar semi-decrépito, com uma decoração característica dos anos 70, frequentado pela nata de bebedolas do local. E com televisão a cores, claro.
O Coelho estava dividido em duas salas grandes (restaurante e bar) separadas por uma parede, e com um balcão ao fundo, de madeira velha e a cheirar a bagaço, com bancos redondos esfolados que giravam. Naquela noite a área do bar estava deserta, com cadeiras espalhadas ao abandono como testamento às multidões que por ali tinham abancado durante o dia. Ao fundo, no balcão, ainda resistiam umas poucas pessoas, em conversa ruidosa. Tinha um cheiro característico, uma mistura de tabaco queimado e Macieira, e o chão de azulejos já tinha visto melhores dias. No tecto rodavam umas ventoinhas, preguiçosas e perigosamente oscilantes, que me provocavam calafrios quando lhes sentia o abanar próximo do cachaço. Puxei uma cadeira para longe das pás giratórias, apoiei os cotovelos numa das mesas, estiquei o queixo para cima pois a televisão estava apoiada numa prateleira mesmo ao cimo da parede, e perdi-me. Já não estava no Coelho, os bêbados reduziram-se a um murmúrio longínquo, entrei em Metrópolis a voar por entre os prédios.
Curiosamente, o Super-homem nunca foi o meu herói favorito. Antes mesmo de aprender a ler já as minhas irmãs me compravam as revistas do Homem Aranha, numa papelaria da Rua Direita em Viseu (que ainda existe, mas é livraria, agora), e quando chegou a altura de vestir um pijama colorido e sair para o largo de oliveiras à beira da nossa casa, era o aracnídeo que encarnava. Ai, as doces recordações da infância… o riso histérico das vizinhas nas janelas quando viram as minhas piruetas no empedrado, o baloiçar precário nos ramos…
Mas há qualquer coisa naquele super-herói que apela ao divino que há em nós. Não é a invulnerabilidade, não é a super força, ou a visão de calor e de raios x, nem mesmo a nobreza da personagem. É a capacidade de voar por entre as nuvens, mais rápido que uma bala. Foi o que me cativou desde cedo, e aquilo que me prendeu durante as duas horas (?) do filme, mesmo levando em conta os fracos efeitos especiais. Voar. Já deixei de sonhar que voava há alguns anos, mas a cada encosto na almofada sinto uma prece silenciosa cá dentro, a pedir “mais uma vez, só uma vez, por favor”. É a expressão de liberdade absoluta. Voar.
Quando fui ver este novo Super-homem, levava muitas expectativas na bagagem, mas também uma boa dose de reserva. Sabia que tecnicamente o filme seria fantástico, e pela primeira vez podemos ver o homem de aço realmente a voar, mas também sabia que nada poderia quebrar o primeiro encanto. O filme tem sequências repletas de espectacularidade (a cena do avião em queda é fantástica), mas uma história fraca, com actores e actrizes mal escolhidos, deixa muito a desejar.
Brandon Routh está bem escolhido pelas semelhanças físicas com Christopher Reeve, mas nunca consegue impor-se perante tamanho legado. O que não é de espantar, uma vez que se trata do seu primeiro papel, e nota-se bem o desconforto do actor em certas cenas que exigem um pouco mais de expressão dramática. Não percebi muito bem se estava a tentar colar-se aos trejeitos de Reeve, ou a prestar-lhe uma singela homenagem pelas mãos do realizador, mas o resultado final nem sempre é o melhor. E sofre de um dos problemas que afectam outro actor importante para a trama, que é o de ser demasiado jovem para o papel. Senão vejamos: neste filme, que supostamente é a continuação de Superman II (o III e o IV são ignorados, o que é uma bênção, pois foram o claro declínio da série), o Super-homem volta à terra depois de cinco anos passados no espaço, em busca do seu planeta natal, ou o que restou dele. Não se compreende que, passados cinco anos, o Super-homem apresente o aspecto de um homem a entrar na idade adulta. O engraçado é que, na minha opinião, Christopher Reeve tinha um ar demasiado adulto para quem saiu da quinta dos pais e procurou o primeiro emprego na cidade. São incongruências que facilmente perdoamos, e acredito que nos filmes seguintes Brandon Routh esteja mais amadurecido, fisicamente e como actor, e aí sim, tenhamos um Super-homem adequado.
A personagem de Lois Lane, Kate Bosworth, também é escandalosamente jovem para um papel de uma mulher que, para além de ser mãe de um miúdo com cinco anos, ainda teve tempo de ganhar um Pullitzer. Não compreendo a escolha, aquele papel precisava de alguém mais velho, com um ar mais profissional com aspecto de jornalista. A menina parece que saiu directamente de uma série para adolescentes, e quando tenta mostrar a sua personalidade forte e teimosa perante o editor do jornal (Frank Langella num Perry White apagado e burocrático), mais parece uma rapariguinha birrenta e mimada. Por outro lado, Kevin Spacey apresenta-se razoavelmente competente, e ofusca até certo ponto o Lex Luthor original (Gene Hackman), mas também não resiste a um certo histerismo de vilão maquiavélico.
A história não está mal de todo, mas tem muitos buracos, sendo que o maior deles reside justamente no plágio descarado que fizeram ao argumento do primeiro filme. Valha-me São Eustácio e todos os deuses do Vale do Nilo, com tantas histórias boas por aí, publicadas em milhares de revistas, não conseguiram fazer nada melhor do que ir buscar exactamente as mesmas ideias fulcrais e conceito do filme original de 1977? Mais uma vez temos um Lex Luthor obcecado com a criação de propriedade imobiliária (e destruição da propriedade já existente como consequência), mais uma vez temos um herói subjugado pela kriptonite, mais uma vez uma comparsa do vilão que lhe estraga os planos. Aliás, todo o plano maquiavélico de Luthor é risível, o que nos leva a outro assunto, igualmente pertinente.
Os super heróis representam os nossos ideais, as nossas aspirações enquanto seres humanos fracos, falíveis, e pouco nobres. Tanto quanto os deuses da antiguidade representavam o ideal de perfeição em forma de entidades superiores que governavam por vezes caprichosamente o destino dos pobres e indefesos mortais. O Super-homem, por aquilo que é e pelo que representa aos nossos sonhos, é o deus dos tempos modernos que paira acima de nós e ouve os nossos apelos e súplicas (preces?), pronto a intervir quando necessário. Esta imagem está bem patente na cena em que ele paira na atmosfera terrestre, de braços abertos em cruz (um pouco óbvio, sr. Singer, duh!), a ouvir todas as vozes da humanidade, a descer à terra para nos salvar. É um conceito bonito, e reveste o personagem de uma monumentalidade e dignidade que os filmes anteriores não tinham. O Super-homem merece essa monumentalidade, porque realmente é um deus, é o resultado da nossa vontade de alcançar uma certa noção de divino, de ultrapassar as misérias e fraquezas humanas.
Sucede que, na altura da sua criação e em anos subsequentes, o mundo era um local bastante mais simples. Na linear divisão de poder entre duas potências congregava-se uma igual divisão, a preto e branco, entre o bem e o mal (nós éramos o bem – a civilização ocidental –, e eles os maus, os comunistas devoradores de crianças que não permitiam ao seu povo viver em liberdade). Um personagem tão nobre, tão empenhado na defesa dos ideais do bem e da justiça, encaixava na perfeição nesta visão maniqueísta do mundo, mas entretanto o mundo mudou, e nada é a preto e branco. Todos os conceitos e ideologias se equilibram numa camada infinita de cinzentos, e os ódios e violências atingiram proporções inimagináveis. Existe lugar para um Super-homem num mundo destes? Ou melhor, será que ele pode fazer alguma coisa, terão as suas simples acções algum significado perante o desfile de horrores que nos servem diariamente pela televisão?
Este conceito está a ser, ainda de uma forma algo inepta, abordado pelas revistas de super heróis da actualidade, e era algo que gostava de ver trazido para o ecrã dos cinemas. Gostava de ver um herói esmagado pela maldade do mundo, a salvar uma pessoa de um incêndio com a plena noção que não estava a conseguir impedir o massacre de inocentes em qualquer outro ponto do outro lado do globo.
E aqui, penso que o filme perde a aura de fascínio, porque os maus estão bem definidos, e têm algum plano estúpido que vai provocar a morte de milhões, mas são tão ineptos nas suas acções, tão ridículos nas suas aspirações, que empalidecem frente a qualquer bombista suicida anónimo que se desfaz em bocados e leva dezenas com ele. O mundo do filme não é o mundo em que vivemos, e naturalmente que nunca poderia ser (com homens voadores e essas coisas e tal), mas podia ser um reflexo mais próximo do nosso mundo. Podia ter dilemas morais, consequências, culpa, morte e dor. E só tem fogo de artificio extremamente bem feito e umas poucas ideias coloridas daquilo que gostávamos que o mundo fosse. Embora nunca possa ser.
Para terminar, mais uns buracos que revelam alguma cegueira do realizador: o fato do Super-homem resiste a munições de calibre anti-tanque, mas não consegue manter a integridade perante uma pedra afiada de kriptonite. O caracol na testa do Super-homem dá-lhe um aspecto de cantor pimba (eu sei, eu sei, o Reeve também tinha, tal e qual como nas revistas, mas actualizem-se, pelamordedeus). O herói consegue erguer um continente do oceano e enviá-lo para o espaço profundo, aparentemente desconhecedor da capacidade de resistência e tensão dos materiais (tentem levantar o carro pelo pára choques e vão perceber: parte-se o plástico, o carro não se mexe).
São opções destas, que demonstram algum desrespeito pela personagem (que merecia uma história melhor, e com mais lógica) e pelo público (que pelos vistos não tem discernimento suficiente para notar estas coisas), que me deixam com um sentimento agridoce; o filme é bom nos momentos bons (como quando vemos Clark Kent a observar Lois Lane, através da visão de raios x, a subir pelo elevador, ou mesmo nos flashbacks da adolescência do herói), e péssimo nos maus (Lois Lane é tão burra que, perante a iminência de um desastre aéreo, faz o mais óbvio, que é soltar o cinto de segurança e andar aos tombos pelo avião). Bryan Singer abandonou o franchise dos X-Men para este projecto, mas deixou-se levar demasiado pela aura de génio que acredita ter, e preferiu desenvolver ideias gastas com um toque novo aqui e ali, e um clima de romance meloso inadequado. Não gosto de ver um Super-homem atormentado pelo romance da sua amada com outro homem, tal e qual um adolescente imberbe. Preferia ver um homem com poderes extraordinários a tentar o impossível: salvar a humanidade de si mesma.
Ainda assim, o filme vale a pena ser visto. Não consegue ultrapassar o original, com o saudoso Christopher Reeve apoiado nos arames a fingir que voava a alta velocidade, mesmo que a capa apenas sacudisse ligeiramente, e se notasse a discrepância de iluminação entre o fundo e o herói. Esse senhor, pelo papel que imortalizou, e por tudo o que conseguiu ultrapassar na sua vida, vai ser sempre o verdadeiro Super-homem. Até o miúdo embasbacado no Coelho sabia isso, quando o filme terminou e voltou para casa, a sonhar acordado que voava por entre as nuvens.