Porque detesto escrever. A sério. Detesto mesmo. Acho odioso aquele vazio que se instala depois da última letra da última palavra da última frase do último parágrafo, o esgotamento de expressões, conjugações, verbos, adjectivos, metáforas, substantivos, gramáticas, ortografias, erros, palavras que fazem surf em ondas vermelhas ou verdes, cliques com o botão direito do rato, adicionar ao dicionário, ignorar palavra, escolher alternativas, descobrir de repente que por mais livros que leiamos, acabamos sempre traídos por dedos preguiçosos, intermináveis revisões ao texto, corrigir o que nos parece indigno do nosso génio literário, apagar tudo com um enorme sentimento de frustração – porque nunca seremos tão bons como aqueles que admiramos –, cerrar os dentes, acender mais um cigarro, e recomeçar.
Não gosto de escrever, e esta é a única concessão que faço à minha vaidade de me considerar escritor. Só neste aspecto posso considerar-me autor de direito. Nas palavras de Stephen King – raios parta, nunca vou ser tão bom -, que por sua vez citava alguém que dizia que alguém tinha uma vez afirmado que nenhum escritor gosta de escrever; “gosta é de ter escrito”. E é mesmo isso, acreditem: detesto o trabalho de alinhar palavras em frases, abomino o esforço de imaginar personagens, dar-lhes vida e colocá-los em situações invulgares, tudo isto para poder depois discorrer interminavelmente sobre algum ponto de vista, que por sua vez pretende ser uma célula, ou cadeia, de uma ideia, um sentimento, imagem, expressão, algo que na maior parte das vezes é intangível, apenas um suave dedilhar em cordas que nem todos os que lêem trazem dentro de si. Sou como o pintor que nos deixa descobrir nas suas pinceladas os reflexos de nós mesmos, mas não pinto, apenas exprimo.
Os melhores textos nasceram de ideias desesperantemente chatas, que me atormentaram durante dias, semanas, horas a fio, a exigirem a transposição para o papel. Tento ignorá-las, desviar a minha atenção com programas de televisão fúteis que supostamente deveriam alienar-me de toda e qualquer realidade, fujo-lhes com observações da vida que corre na rua – da janela da minha marquise –, mas estou sempre absorto, a ouvir argumentos ditatoriais da imaginação, e desenvolvo tramas sem querer, sem pensar. Crio fios inteiros de histórias que me parecem tão sedutoras, e fico tão hipnotizado por este transe interno, que acabo sempre a rabiscar qualquer coisa no primeiro pedaço de papel que encontro, e que irá ficar descuidadamente arquivado no topo da pilha de cd’s ao lado do monitor. Às vezes acontece-me fazer uma viagem de quilómetros no carro, e quando chego ao destino, tento recapitular a lembrança dos caminhos por onde passei, o que estava a pensar quando dei o pisca naquela curva, quanto tempo fiquei parado no semáforo, a velocidade a que vinha, quais os carros que estavam à minha frente, e nada. Absolutamente nenhuma recordação da viagem. Estava atento à condução a um nível automático, mas não estava no carro, tinha viajado para qualquer lugar que só visito quando escrevo, ou imagino escrever. Não consigo resistir à escrita, mas esforço-me.
O que gosto mesmo é de ler aquilo que já escrevi. Vezes e vezes sem conta. Sou um obsessivo narcísico dos raros lampejos literários que me assaltam ocasionalmente, aqueles poucos que sobrevivem à fingida indiferença, à pilha de papéis ao lado do monitor, à compreensão grafológica dos rabiscos urgentes, à preguiça de me sentar e dedilhar o teclado. Sou um escritor que se masturba internamente com o que escreveu, e deleito-me com as ideias inteligentes que consegui debitar, derreto-me com a habilidade com que consegui transpor determinada imagem ou opinião para o texto, imagino alguém a ficar tocado de uma forma única por aquelas palavras, e leio, leio, leio interminavelmente o que escrevi, comovido até ao nó na garganta, quase não consigo acreditar que fui eu – sim, eu! – que alinhou aquilo tudo de uma forma tão maravilhosamente poética, tão ordenadamente construída, em crescendo suspenso até à explosão de um final que perdura na memória, e convida à reflexão.
Se vos pareço demasiado convencido, sosseguem. É só com o que já escrevi; de resto, sou extremamente crítico e inseguro, quando o verbo não é escrevi, mas sim escrever. E aprendi uma técnica, que aqui deixo, para aqueles que também detestam tudo o que estiver a sair dos seus dedos: deixem os textos amadurecerem durante algum tempo, antes de fazerem quaisquer correcções. Vão achar que está tudo muito melhor do que pensaram, ou porque acertaram mesmo à primeira, ou porque entretanto o vosso talento diminuiu, bem como as expectativas e respectiva capacidade de avaliação.
Porquê escrever? Não escrevo para ninguém, mas também isto é uma mentira pegada que gosto de atirar ao ar quando pressinto alguma crítica negativa aos meus supostos talentos literários. É como se dissesse: “Está bem, achas que não tenho jeito nenhum para isto, mas que me importa, não é para ti que escrevo, não é para ninguém. Escrevo apenas para mim.” Na verdade escrevo para mim, para quem me lê, para uma pessoa em especial que não gosta de ler, para todos aqueles que não me lêem, nem nunca vão ler, mas estão próximos. Escrevo porque quero reconhecimento, mais reconhecimento do que aquele que me voto depois de ter escrito. Quero realmente tocar alguém do outro lado das palavras, dedilhar sentimentos, despertar paixões, aplacar alegrias e tristezas. Quero criar mundos, reais ou não, dentro de mim e de quem me lê. Mesmo que não consiga, esforço-me.
Porquê escrever? Porque sou preguiçoso, e quero impor uma disciplina a esta urgência de escrever. Até agora, as únicas regras que segui eram escrever quando é-me absolutamente impossível não o fazer, ou em resposta a um desafio, pergunta, opinião, reflexão, de outrem. Se me querem encontrar, procurem-me nos fóruns do SAPO (Generalidades e Namorados), e descobrindo os fóruns, talvez descubram um pouco mais de vocês próprios. Já tem acontecido. Vou tentar manter alguma regular irregularidade, mas não garanto quantidade, nem mesmo qualidade.
Porquê escrever? Isto não é um diário, não é uma amostra de ensaios, não é o embrião de um futuro livro, não é uma colecção de pensamentos soltos, não é um acumular de críticas e opiniões canibalizadas de notícias na comunicação social; isto sou eu, e eu sou eu, tremendamente narcísico com o que escrevi, e inconcebivelmente preguiçoso com o que quero escrever. As regras que utilizo para a vida são as mesmas que vou aplicar a este espaço, e se quiser faço, se não quiser não faço, se não quiser mas tiver que fazer, faço, e se não tiver tempo, adio. Durante o máximo de tempo que conseguir.
Porquê escrever? Se estiver aí alguém, depois de tudo isto, acho que já compreendeu, mas mesmo assim respondo:
Porque não consigo não escrever.
terça-feira, maio 23, 2006
Porquê escrever?
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4 comentários:
Fico feliz por este teu encontro com a realidade cibernáutica. Ficamos à espera de mais e mais textos, de mais e mais noites e dias em que não te apetece escrever mas apenas ler e deixar que outros se deliciem com as tuas leituras. Não nos prives dos teus textos...
Um grande abraço para ti, amigo. Continuarei a escrever, e a ler-te regularmente.
Isto pode soar a loucura, mas eu gosto de ir ver o início dos blogues que visito com regularidade, e descobri algo estranho... nós dois começámos o blogue no mesmo dia, do mesmo mês, do mesmo ano... :) Que sintonia! :) Para já não falar do facto de tu adorares o Stephen King e o Neil Gaiman (essa é a ironia mais curiosa)... Eu acredito que tudo o que surpreende, causa estranheza, parece não fazer sentido ou surge como um acaso, é tudo menos isso. Acredito que tudo tem uma razão de ser, que tudo faz sentido, ainda que demoremos a entendê-lo ou nunca o encontremos.
Bem, foi mesmo só para partilhar isto contigo. :D
Beijinhos e um 2007 mágico para ti e para a tua amada. ;)
Respondido. :)
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