sexta-feira, maio 26, 2006

Ridículas I

Começou com um silenciar dos ruídos naturais, uma quietude desassossegada, que pousou imperceptivelmente nas copas das árvores, em cada ramo, sobre as pedras e os tapetes de folhas que cobriam o chão. Encheu-se o ar de silêncio e calou-se cada pássaro, cada pequeno animal, e por todo o lado parecia ter o tempo abrandado, até o vento quente e abafado desacelerou a sua marcha e tornou-se brisa suave e morna.

Encheu-se o céu de nuvens carregadas de cinzento, erigidas em castelo inexpugnável pela atmosfera, e de repente o ar ficou eléctrico, vibrante de energia expectante, com um leve odor a azoto que prenuncia sempre uma tempestade de verão. Os agricultores nos campos pararam por um momento o seu trabalho, voltaram os rostos para os montes distantes, e apressaram-se a recolher às suas casas, já a pensar na lareira que em breve aqueceria os seus corpos, e espalharia sombras bruxuleantes pelas paredes.
 
A luminosidade principiou, quase com timidez, a diminuir gradualmente, e o dia tingiu-se de cores esbatidas, o mundo encheu-se de um tom de sépia acinzentado, como uma fotografia de tempos antigos. A norte relampejou uma faísca de luz, a atravessar os céus qual rachadura num vidro, e ressoou um trovão, ainda longínquo, murmurado, que aos trambolhões percorreu montes e vales, e se apagou devagar, em jeito de musica que toca cada vez mais baixo, até imperar por fim o silêncio.
 
Naquele segundo que antecipou a tempestade quase se poderia encaixar a breve história do tempo. Teve a duração da batida do coração, e era como se o mundo aguardasse com ansiedade o próximo evento. Começou então a cair uma chuva grossa, que respaldava no chão seco e criava pequenas nuvens de poeira, e foi como se as comportas cerradas do céu se tivessem aberto de rompante. A água caiu em catadupas e da terra ergueu-se um odor acre e agradável, as poças tornaram-se pequenos lagos, os arbustos rasteiros fremiram sob o peso do liquido que escorria das suas folhas, e a relva achatou-se com violência.
 
Eu estava à porta da cozinha, a sentir os salpicos frescos da chuva no rosto, a escutar o tamborilar forte e ritmado nas telhas, e, por incrível que te possa parecer, estava a pensar em ti.
 
Há muitas coisas na minha infância e no tempo que antecedeu a idade adulta que se esbateram da memória, e que lamento ter perdido, porque foram recordações boas, e já não sei onde as guardei. Mais do que eventos concretos, recordo certos acontecimentos não tanto pelo que aconteceu em si, mas pelo brotar de sensações que me despertaram. Lembro-me de virar o sofá da sala contra a parede, uma fraca improvisação de trincheira, e de ver um filme de guerra na velha phillips a preto e branco que o meu pai havia comprado anos antes, com uma espingarda de madeira que eu próprio construí, e de cada vez que apareciam soldados nazistas no ecrã, eu disparava projécteis imaginários e ajudava o herói a salvar-se dos perigos que corria.
 
Lembro-me de olhar com inveja, nas tardes quentes de verão, os meus amigos que iam em grupos para o rio tomar banho, e eu preso na loja de fotografia onde trabalhava, a lamentar a minha má sorte. Fechávamos às sete e alçava a mochila vermelha aos ombros (que a minha mãe encontrou no lixo com as alças desprendidas, e laboriosamente coseu), e saía disparado como um foguete, sem parar por dois ou três quilómetros, até ver a velha ponte romana. Àquela hora a multidão já tinha partido, estava sozinho, despia-me rapidamente e mergulhava nas águas negras, enquanto o sol se escondia atrás das árvores. Sentia-me como se fosse a única pessoa viva no mundo.
 
Sempre tive uma certa propensão para o recolhimento interior; não raras vezes entrei pelos pinhais que circundam o bairro onde morava, imerso em pensamentos, e caminhava alheado, sem destino. Outras vezes sentava-me no sofá que serviu de trincheira e imaginava a minha vida com muito dinheiro, sonhava que a minha paixoneta do liceu não podia passar sem mim, que podia voar e não existiam paredes nem barreiras, e podia ir a todos os locais que conhecia dos livros que devorava.
 
Recordo particularmente aquela tarde em que me encostei à soleira da porta da cozinha e observei a tempestade a formar-se sobre a vila, até desaguar em fúria, porque estava sozinho em casa, tinha acabado de lanchar, e estava a pensar em ti, meu amor. Claro que não sabia quem eras, e não te conhecia na verdadeira acepção da palavra, mas era para ti que dirigia os meus pensamentos porque pensava em amor, e na mulher que haveria de amar um dia. Ainda não tinhas um rosto formado, e haveriam de passar muitos anos até ver o teu olhar esverdeado, até ouvir a tua voz de tons doces, mas já na altura sabia que ias ser linda, que te ia amar com todas as fibras do meu corpo e espírito, e quando te encontrasse tudo ficaria por fim bem, porque seria como se algo que me faltava finalmente encaixasse, e de repente o mundo começasse a fazer sentido.
 
Era um gaiato romântico na altura, sempre consciente e necessitado de amor (mesmo amor que ainda iria sentir), e com o passar dos anos acelerei as minhas pegadas, porque era a ti que procurava em cada recanto, em cada uma das noites e dias vazios. Aos poucos fui-me apossando de uma urgência ansiosa, porque sentia amor mas não sabia a quem o destinar, existia cada vez mais uma sensação de estar incompleto, de desejar que o acaso te trouxesse até mim.Vivemos as vidas como sonâmbulos quando não temos a quem amar.
 
Olhando agora para trás, parece-me que tudo o que fiz foi procurar-te, e no entanto… houve momentos em que não pensei em ti, houve alturas em que tudo o que queria era a insatisfação da satisfação imediata, em que passava os dias e noites frenético, sorvendo cada instante daquilo que a vida me dava com sofreguidão, porque queria mais do que tinha, mas não tinha aquilo que verdadeiramente queria. É triste viver assim, e às vezes vejo pessoas na rua com o semblante tão carregado, e parecem-me fantasmas sós, que vagueiam por um mundo de sombras porque não têm lábios macios à sua espera, ao fim do caminho não são esperados por um corpo quente e um abraço de carinho. Enfim… talvez toda a gente tenha alguém algures à sua espera, e caminhem sem saber para onde vão porque no intimo sabem que são esperados. Ou esperam apenas que o destino lhes traga aquilo que já perderam a esperança de ter.
 
Houve alturas em que tudo me pareceu um jogo demasiado estúpido para ser jogado, porque era a ti que amava e era a ti que esperava que surgisses na minha vida, mas não te conhecia, nem conhecia os insondáveis acasos que me levariam por fim para aquela cadeira ao teu lado. Tenho arrepios de medo, por vezes, quando penso na fragilidade de tudo isto: uma decisão mal tomada aqui, uma falta de atenção ali, um pensamento menos ousado acolá, e estaríamos irremediavelmente afastados do caminho que nos traria um para o outro. Quem sabe se não passaríamos um pelo outro um dia, numa rua movimentada, talvez por breves instantes os nossos olhares se cruzassem, e uma dor ínfima nos enchesse o peito sem sabermos porquê, até seguirmos em frente, separados. E eu acabaria por esquecer aquela mulher linda de rosto ameninado que tinha admirado na rua. Continuaria a vagar pela vida como mais um fantasma solitário.
 
Fui para a nossa faculdade porque era a que tinha as mensalidades mais baratas; escolhi marketing e publicidade porque não existiam cursos de jornalismos nocturnos; entrei para a faculdade porque não entreguei os papéis a tempo de ser colocado com a primeira vaga de estudantes inscritos no ensino superior, logo nenhum dos cursos públicos a que concorri me agradavam; fui para a universidade porque finalmente me decidi, após 2 anos de tentativas frustradas, a dar tudo por tudo nas específicas; fui fazer as específicas porque estava no Porto, após dois anos de espera por uma colocação, em Estremoz; fui transferido para o Porto porque um dos sargentos tinha uma cunha de um general; pedi transferência porque não queria estar no Alentejo, e fui para Estremoz porque não existiam vagas em mais nenhum lugar; fui para a tropa porque não queria passar a minha vida como mecânico em Viseu, e fui para Viseu porque a minha mãe queria que eu viesse viver para Portugal, já que pela minha vontade teria ficado de bom grado no Brasil.
 
Estás a perceber a delicada construção daquilo que foi a minha vida, e que me levou até ti? Um frágil jogo de acasos e consequências, que me poderiam ter levado para milhares de locais diferentes, para milhares de pessoas diferentes, e foi para os teus braços que vim parar. Até na tua vida podes encontrar este jogo subtil, porque também vieste até mim conduzida por uma série de causas e efeitos que também te poderiam ter irremediavelmente afastado de nós os dois.
 
Podemos pensar que existem coincidências, e tanto poderíamos ter acabado um com o outro, como poderíamos ter encontrado outras pessoas, e vivenciado emoções semelhantes, mas algo em mim me diz que não, que correu tudo da maneira como deveria ter corrido. É essa coisa a que chamamos destino: foi o destino que nos trouxe a nós dois, àquilo que somos, e tudo podia ter acontecido de maneira diferente, mas não. Tinha que te encontrar porque de outra forma nada disto faz qualquer sentido, e só contigo é que consigo abarcar aquilo que realmente vivi, e quanto de tudo foi um sonho delirante, e quanto foi realidade.
 
Há poucas certezas nesta vida: sabemos que nascemos, vivemos e morremos, mas quase tudo o que acontece in between é na maior parte dos casos uma incógnita. Não sabemos onde estaremos daqui a um ano, nem daqui a uma semana, porque a vida tem maneiras próprias de se contorcer sobre si mesma, e seguir por um caminho nunca antes pensado. Existem, contudo, algumas certezas, e não são certezas racionais, tais como sabermos que 2+2=4, ou que o sol nasce na China e põe-se na Europa, mas sim certezas emocionais. São as certezas do coração, aquelas das quais duvidamos na fímbria superior do consciente, mas acreditamos com todas as profundezas do inconsciente. Assim como eu sabia, enquanto via a chuva desabar sobre a terra, naquela tarde tão longínqua, que algures tu existias, mesmo que jamais na vida te encontrasse, também sei que te amo da mesma forma como sempre te amei durante a minha vida, em cada alto e cada baixo, e te amarei enquanto existir em mim a capacidade de amar.
 
Podes dizer que ninguém sabe como serão os dias que virão, e até certo ponto, tens toda a razão. Mas isso é introduzir um elemento de racionalidade consciente num sentimento que não é governado pela razão: amo-te porque sempre te amei, porque é a ti que estava destinado o amor. Se amar-te durante três anos, desejar-te com o espírito em brasa, enquanto fazia todos os possíveis para te esquecer, não apagou esta chama que sinto a queimar, como poderia deixar de te amar, tendo-te nos meus braços? Mesmo que acabasse o teu amor, mesmo que seguíssemos trilhos separados, acredita que continuaria a ser teu, porque sempre fui sem o saber, e agora, que sei que sou teu, mais teu sou, pois não és sonho ou desejo, mas sim real e tangível.
 
Onde poderia encontrar alguém como tu, amor? Não sabes, não entendes… compreendes que te amo, e até certa medida compreendes porque te amo, mas não entendes o quão especial és aos meus olhos, o quão única te tornaste desde que te conheci, como reservo para ti olhares que mais ninguém me conhece, e me transformei - e transformo - para poder ser agradável também aos teus olhos. Acima de tudo, adoro a maneira como me amas por aquilo que sou, sei que posso apresentar-me diante de ti sem artifícios, despojado de qualquer máscara, e ser com sinceridade. É assim que me amas, é assim que me desejas. Ou pelo menos assim espero, e igualmente não o desejaria de outra forma.
 
Aquele beijo que te tentei dar no Triplex foi o acto mais estúpido e insensato que tentei fazer, numa lista demasiado longa, porque tinha a certeza que ias recusar e já antevia uma noite carregado de mágoa. Também é aquilo que menos me arrependo de ter feito. Quero estar contigo para sempre, que estejas ao meu lado, para me dares a mão, e quando envelhecermos juntos e formos dois velhinhos de braço dado na rua, quero ainda poder dar-te um beijo nos lábios, à vista de toda a gente, e dizer-te baixinho ao ouvido que te amo, que nunca parei de te amar em todos os anos que passaram, e não vou parar de te amar em todos os anos que ainda virão.
 
Dizem as antigas filosofias orientais que o equilíbrio cósmico é feito de uma moeda de duas faces, em que para cada verso existe um reverso, e as coisas boas são compensadas com coisas menos boas, por cada sorriso de alegria espreita sempre uma lágrima de tristeza. Este ano que passou foi recheado de acontecimentos maus, que me marcaram profundamente, e momentos houve em que pensei que não existia nenhuma saída, que estava preso e sufocado numa espiral de obstáculos e contrariedades, sem lugar para onde ir.
 
Mas foi também neste ano que aconteceu a melhor coisa que poderia ter acontecido: estar contigo, e crescer contigo, dar forma a um amor que prenunciava, mas já tinha desistido de viver. E só por isto, sei o quão estávamos destinados a viver este amor. Apesar de todos os problemas, tu estiveste ao meu lado, foste a minha força e apoio, o farol que iluminou o meu caminho. Foi o nosso amor que me permitiu encarar tudo de frente, cerrar os dentes com teimosia e nunca desistir, porque amo-te como nunca amei ninguém, e temos uma vida para viver juntos.
 
Quando leres isto, estarei, quem sabe, a atravessar montanhas e vales por entre a escuridão, cada vez mais perto de Viseu, a afastar-me de ti. Posso estar longe, mas é a ti que trago no meu coração, é em ti que penso, e é para ti que voltarei, carregado de saudades. Foi sempre para ti que caminhei, sem saber, foi sempre na esperança que um dia surgisses na minha vida, e acredita que, para onde quer que vá, será sempre para voltar para os teus braços.
 
Foi a vida que te guiou até mim, que me guiou até ti, e sem isto, não passo de um fantasma só, que caminha e não sabe porque motivo segue em frente. Se te amava antes mesmo de te conhecer, quem sabe o que poderá este amor fazer por nós, agora que estamos juntos?
 
Eu sei: poderá dar um sentido à vida. Tu és o meu sentido, em cada noite escura e cada dia ofuscante.
 
Nem poderia ser de outra maneira.
 
Natal de 2004

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