domingo, junho 11, 2006

Corações apagados

Tens o rosto da cidade, banhada pelo azul luarento, e vejo-te em todas as esquinas, onde o lixo se acumula como sarro nos vincos do corpo. Os teus dedos são os prédios espetados na vertical, a acusarem as estrelas, e tens os olhos em cada janela que brilha e tremula no horizonte assimétrico, tanta gente a acender e a apagar o que vive, afinal és tu que me piscas o olhar cheia de malícia.

A tua voz é o eco de cada escape ruidoso nas ruas desertas, cada ambulância que arranca gritos das paredes, cada vozear de seres humanos à distância, juro-te que não estão realmente ali, só as suas vozes chegam até nós. Pertencem a outros tempos, outras dimensões, são chamamentos de pessoas que viraram pó, e aguardam por nós. Nós pó.

As ondas do rio sujo, que banha as margens e rasga a cidade como cicatriz aberta, são as curvas do teu corpo, ondulantes e oleosas, quando te debruças para cima de mim, te espalhas sobre as minhas mãos, e me arrancas respirações, esfomeada. Quase diria que me queres privar do ar que me sustém. Matas-me aos poucos com tanta fome, tanto ardor nesses lábios, sinto-me repasto de quem não sabe o que é saciedade.

Encontro-te nas pedras do chão, nos tijolos pintados a grafitti, das paredes. Vejo-te só em cada rosto que passa debaixo dos candeeiros amarelos, e quando a escuridão tomar conta de tudo, ainda te vou reconhecer nas ruínas do que sobrar, nos prédios de alvenaria partida, vidros estilhaçados, passadeiras gastas, sinais caídos, fios tombados, semáforos desligados, árvores mortas, jardins secos, esgotos entupidos, outdoors vandalizados, posters desbotados, montras empoeiradas, muros escancarados, e em todos os

...

corações apagados.

1 comentário:

Sandman disse...

Este comentário serve apenas para testar o novo email do blog; gostaria, no entanto, de registar que este deve ser um dos meus textos favoritos, e ainda me lembro da urgência com que o escrevi, a tentar passar para o teclado as palavras e ideias que me acometiam, à velocidade do pensamento.

Faltaram palavras e ideias, perderam-se entre o cérebro e as mãos, mas o que ficou, ficou catita. E a fotografia ilustra perfeitamente o tom do texto.

Eh.